CONTO 020 - A PRAÇA, A LOUQUINHA E A MÃE

 

A PRAÇA, A LOUQUINHA E A MÃE

A LOUQUINHA
Na frente daquela grande escola, entre movimentadas avenidas e prédios altos, havia uma praça. Uma bela praça! Daquelas que servem como um oásis verde cravado em meio ao concreto e o asfalto de uma grande cidade. E ela não desapontava, pois, como boa praça que era, tinha todos os elementos necessários para que fosse reconhecida como tal. Havia bancos com pessoas sentadas, cãezinhos carregando seus donos pela coleira, flores, passeios, um playground meio enferrujado, mas que ainda fazia a alegria de crianças que brincavam e riam alto. Havia árvores e flores e pássaros de diversas espécies.

Contudo, algo fazia desta uma praça diferente das demais que obviamente existiam naquela grande cidade. Uma particularidade, uma presença que se distinguia dos outros frequentadores do lugar. Ali vivia “A Louquinha da Praça”. Uma mulher cuja idade era difícil definir, pois podia muito bem ter 30 ou 50 anos. O rosto redondo de expressão triste, os cabelos compridos sempre cobertos por um boné azul velho. Usava vestes surradas e carregava consigo um grande saco onde, aparentemente, trazia suas roupas.

A mulher era uma conhecida moradora de rua do bairro. Transitava a esmo durante o dia, parava em frente a algumas lojas e farmácias como se estivesse procurando alguma coisa e, finalmente, andava até a praça que servia como seu dormitório. Toda noite ela chegava, estacionava aquele grande saco plástico ao lado de um dos bancos, ficava alguns minutos falando sozinha, sentada na beiradinha do assento, balançando o corpo para frente e para traz. Desta maneira permanecia por um tempo, até deitar-se e cobrir-se com um cobertor velho que trazia no saco. Só então adormecia.

Acordava com os primeiros raios de sol. Era observada com certa desconfiança pelos transeuntes que por ali faziam seu jogging matinal ou passeavam com seus pets. Alguns alunos que chegavam na escola riam e faziam comentários maliciosos. Eles mesmos a apelidaram de “A Louquinha da Praça”. Todos os dias, sem exceção, a mesma curiosa rotina.

Acordava, sentava na beiradinha do assento e, da mesma forma que fazia antes de dormir, ficava falando sozinha ou cantarolando alguma coisa enquanto balançava o corpo para frente e para traz. Logo, guardava seu cobertor no saco de onde tirava um pedaço de pano velho e começava a bater de um lado e de outro no banco. Girava o pano como se estivesse tentando lavá-lo, ou puni-lo de alguma falta grave que tivesse cometido. Enquanto fazia isso, cantarolava algumas cantigas difíceis de compreender, sempre com aquele movimento de vai e vem com o tronco e a cabeça. Ficava por muito tempo neste movimento, com o olhar fixo no pano, como se concentradíssima em uma tarefa que não aceitava falhas. Em seguida levantava, dava algumas voltas aleatórias, sempre próxima do seu “dormitório” e partia para última parte daquele curioso ritual diário.

Havia ainda o hábito mais estranho de todos, o que mais despertava curiosidade dos passantes e era motivo de chacota por parte de muitas pessoas que frequentavam a praça.

Em uma das extremidades do lugar, na esquina próxima à entrada principal da escola, havia uma grande árvore. Uma gigantesca pata-de-vaca, que tinha ao redor de seu tronco, para protegê-la de vândalos, um cercado feito de grades de ferro. Não era um cercado muito alto, mas era o suficiente para tornar difícil o acesso para algum maroto que quisesse riscar a planta ou mesmo tentar subir nela. Todos os dias a mulher andava até o gradil, segurava em uma das barras de ferro e permanecia por pelo menos uma hora cantando baixinho, embalando o corpo para frente e para trás, apertando firmemente a barra com a mão direita, como se estivesse tentando arrancá-la da estrutura onde estava firmemente soldada.

As pessoas, com cenho franzido, passavam e viam aquela cena incomum. Algumas riam, outras ainda atravessavam a rua com um olhar de medo. As crianças, menos tímidas, apontavam o dedo e faziam comentários jocosos. A mulher ignorava a todos, como se no mundo não houvesse outra coisa senão ela, a grade que mantinha firme entre os dedos e a cantiga indefinível que ia pronunciando baixinho.

Depois de um tempo, voltava para onde estava o saco de roupas, colocava-o às costas por cima de um dos ombros e saía a perambular novamente pelas ruas do bairro. No caminho sempre parava de fronte a uma farmácia próxima, olhava para seu interior, dizia algumas palavras confusas e seguia seu caminho.

A MÃE
Maria era uma mulher batalhadora, muito trabalhadeira e realizada. Vivia com Pedro, seu marido, e seu pequenino bebê em uma casinha de madeira que construíram com muito trabalho, e com muito amor, próximo ao rio de onde tiravam seu sustento. Os peixes que Pedro pescava e os frutos que a terra generosamente trazia às mãos hábeis de Maria, faziam com que a vida da família fosse cheia de trabalho duro, mas também repleta daquela fartura boa de quem tinha tudo que precisava para ser feliz.

Viviam uma vida simples, mas plena. O pai saía todos os dias cedinho para o rio, se equilibrando em uma balsa. Um velho boné azul o protegendo do sol, as roupas surradas e o saco onde carregava uma rede de pesca e a esperança de trazê-la cheia de pescado. A mãe ficava cuidando da horta, do pomar e do bebê. E da casa, pois como todas as mães, o limite do trabalho para Maria era onde sua presença se fazia estar.

Diariamente ela despertava antes mesmo do galo cantar. Sentava na beira da cama onde ficava ouvindo por alguns segundos a respiração do marido que ainda dormia. Fazia uma oração, agradecendo a Deus pela oportunidade de ter mais um dia junto daqueles que amava. Depois, erguia-se e começava a andar pela casa, dando início a mais um dia de trabalho duro. Enquanto preparava o café, ia vez por outra até o bercinho onde dormia seu bebê, segurava em uma das guardas da pequena cama, construída com a madeira de uma grande árvore que foi derrubada ali mesmo naquelas terras, para retirar a matéria prima com a qual construíram a casa. Ficava alguns segundos embalando o bercinho e cantando uma antiga canção de ninar que aprendera com sua mãe. Quando o pequeno voltava a dormir serenamente, Maria voltava para seus afazeres.

Logo, recebia um beijo de Pedro, que pegava o saco com a rede de pesca e subia a correnteza em sua balsa, com seu boné azul, seu sorriso franco e alegria em seu coração. Maria, então, iniciava o dia lavando as roupas sujas batendo-as contra uma pedra na beira do rio para soltar a sujeira. As estendia em um varal que ficava ao lado de casa. Seguia assim seu dia entre a casa, a horta, o pomar e o cuidado com aquele pequeno e amado ser a quem dera a vida.

Em um dia de verão muito quente, Maria acordou com a sensação de que alguma coisa não estava bem. Não sabia explicar. Apenas havia um tipo de aperto no peito, uma angústia, um pressentimento de que algo estava por acontecer. Pedro pegou o saco com a rede, subiu na balsa, e se foi remando rio acima. Naquela manhã, a mãe ficou mais tempo no quarto do bebê, embalando o berço feito de árvore, cantando sua cantiga que aprendera com a mãe.

Foi de repente. Maria ouviu os gritos de Pedro e, ao olhar o rio, percebeu que ele remava de forma desesperada correnteza abaixo. Quando compreendeu os gritos de “Corre, Maria!”, viu que atrás da balsa uma gigantesca onda vinha varrendo tudo pelo caminho. Choveu muito para os lados da nascente, e uma enorme cabeça d’água havia se formado e vinha descendo o rio arrastando tudo pelo caminho.

A água chegou à casa antes de Maria, que desesperadamente tentava nadar, sem sucesso devido a força das águas. Era jogada de um lado para outro, como se fosse uma boneca de pano. A casa, arrastada pela onda, bateu contra as árvores da mata próxima com tamanha violência, que quebrou como se fosse feita de papelão. Dentro dela o bebê no bercinho de árvore.

A onda passou. Maria, agarrada nos galhos de uma árvore, sobreviveu para sofrer suas perdas. Pedro e seu bebê desapareceram nas águas. Da casa, apenas algumas roupinhas de bebê e um cobertor velho presos aos galhos das árvores, junto do saco que servia para guardar a rede e o boné azul.

A mãe juntou as roupas e o cobertor velho, colocando-os no saco. Não sabia o que fazer, nem para onde ir. Em seu peito um sentimento de dor e tristeza aumentava de tamanho e, em pouco tempo, tomava conta de todo corpo de Maria. Do corpo, da mente, do espírito...

Passou a noite ao relento, ali onde até o dia anterior havia uma casa, uma família e amor. Finalmente, jogou o saco sobre um dos ombros e saiu sem rumo em direção à estrada.

Algumas pessoas que viviam na região disseram que Maria nunca mais foi vista por ali. Que talvez tivesse morrido, ou enlouquecido. Outros disseram que a viram sumir naquela estrada sem olhar para trás.

A PRAÇA
Naquela bonita praça de uma grande cidade vivia uma mulher que era chamada por muitos de “A Louquinha da Praça”. Carregava sobre um dos ombros, às costas, um saco cheio de roupas surradas e um cobertor velho. Durante o dia, deixava a praça onde passava a noite e saia a andar pelas ruas do bairro. No caminho, parava em frente a uma farmácia e ficava um tempo olhando para a parede onde se encontrava algumas dezenas de perfilados pacotes de fraldas à venda. Permanecia olhando para os pacotes onde lindos bebês estampavam as embalagens parecendo sorrir para ela. Olhava para eles, cantava brevemente uma canção de ninar, que aprendera não lembrava com quem e, em seguida, seguia seu caminho falando sozinha e arrastando pela calçada os pés sofridos e as lembranças perdidas de uma época em que havia sido feliz.


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Comentários

  1. Gostei muito. Singela explicação para uma tristeza fundada e muito funda. Obrigada

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  2. Ameiiiii as histórias e como você as relatou. Triste, mas muito lindo.

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