CONTO 021 - O menino e a árvore

        Ela está lá, e eu nunca a esqueci.

O ano era 1984. Em uma promoção de um programa de TV da época, se escrevêssemos uma carta para determinado endereço, a produção responderia enviando pelo correio sementes de árvores nativas brasileiras. Um bonito projeto de reflorestamento, em uma época em que as pessoas ainda escreviam cartas e ficavam ansiosos pelas respostas. Eu recebi minha resposta e, junto dela, as sementes prometidas. Eram sementes bonitas, de um vermelho vivo e com uma pintinha escura em uma das extremidades. Sementes de pau-brasil, indicava o folheto que vinha junto com aquelas pequenas joias. Plantei em alguns saquinhos de leite cheios de terra, que serviram como “berçário”, exatamente como indicado nas instruções. Infelizmente, apenas uma delas germinou.

O quintal da minha casa não era tão grande e já estava ocupado com todo tipo de planta que o espaço comportava. Meu pai cultivava uma horta e havia algumas árvores frutíferas. Isso inviabilizava o plantio da mudinha de pau-brasil por ali. Tinha que bolar um plano alternativo se quisesse ver minha árvore crescer. Foi aí que tive a ideia de levar o saquinho de leite com a pequena planta para escola onde estudava.

Eu estudava no segundo ano do Ensino Fundamental, que naquele tempo se chamava “segunda série do primeiro grau”. A Escola Estadual Santa Catarina possuía turmas do jardim, naquela época chamado de “prezinho”, até a quarta série. Ficava em um bairro de São Leopoldo, cidade da região metropolitana de Porto Alegre. Eu ainda não havia completado dez anos de idade, mas como sempre fui “metido”, era relativamente conhecido na escola porque eventualmente declamava poemas nos eventos do tipo “hora cívica”.

Quando achei que a muda já estava forte o suficiente para ser transportada, levei para escola com o cuidado de quem carrega algo precioso. Foi uma atração sua chegada na sala de aula. Professora e colegas queriam ver e entender do que se tratava. No momento em que falei que a trouxe pois queria doá-la para que fosse plantada no pátio, a professora pareceu ficar muito feliz com a ideia. Mostrou-se grata e me levou pessoalmente até a direção para fazer a entrega de uma maneira formal.

Nunca vou esquecer quando a diretora me olhou nos olhos e disse que, como eu estava fazendo uma doação, o certo seria ajudar com o plantio. Chamou um funcionário da escola que abriu um buraco no chão, em uma área do pátio que ficava entre a secretaria e a sala de aula da segunda série. Cercado pelos colegas da turma ajudei a fazer o plantio da mudinha, que não tinha mais que vinte centímetros e apenas algumas folhas. Finalmente, foi cravada uma pequena estaca de madeira ao seu lado, protegendo-a assim de algum estudante que acidentalmente pudesse a pisotear nas correrias que inevitavelmente aconteciam nos recreios. E lá ela ficou, na expectativa de crescer fazendo sombra aos sonhos de um menino que talvez apenas quisesse deixar uma marca positiva naquele lugar.

No início eu ia diariamente até o local onde a jovem planta estava para acompanhar seu crescimento. Contudo, na medida que tanto eu quanto a árvore íamos crescendo, outros interesses iam surgindo. Novas descobertas ocupavam meus recreios. Não tenho certeza quando foi o momento em que esqueci completamente dela. Sei que o ano de 1984 terminou e, em 1985, a sala da terceira série já não era tão perto do lugar onde havia plantado a árvore. Em 1986, meu último ano no “Santa”, a quarta série ficava ainda mais longe, em outro prédio, e isso foi o determinante para que os acontecimentos ligados àquela doação fossem se tornando apenas lembranças remotas. No ano seguinte, 1987, eu trocaria de escola, iniciando minha quinta série no “Poli”, escola vizinha que acolhia turmas dos alunos mais velhos. Talvez neste momento ela sumisse, inclusive, da minha memória. E assim foi até que algo inesperado acontecesse...

Estamos em março de 2023. As idas e vindas da vida me trouxeram novamente para São Leopoldo, desta vez para trabalhar como professor em um colégio no Centro da cidade. No caminho entre minha casa, que fica em uma cidade vizinha, e o colégio onde estou trabalhando, está aquela que no passado foi a Escola Santa Catarina. Atualmente foi fundida com a maior, a escola Polisinos, tornando-as uma única instituição de ensino. O antigo portão de entrada foi fechado e o acesso se dá apenas pelo “Poli”. Então, dia destes revolvi sair um pouco mais cedo de casa e em vez de ir direto para o colégio em que leciono, fui fazer uma visita ao “Santa”. Acho que era apenas para atender um chamado nostálgico, mas na verdade foi mágico! A estrutura da escola pouco mudou nestes quase quarenta anos da última vez que pisei naquele pátio. As paredes de “tijolo à vista”, as salas dispostas na mesma posição, os banheiros e a “pia coletiva” que foi construída quando ainda estudava lá, para nos higienizarmos antes de ir ao refeitório. A área coberta onde fazíamos a fila, os degraus que serviam de púlpito para diretora dar seus recados (pelo jeito não serve mais para isso, pois agora um enorme bebedouro de inox ocupa este espaço). Os passeios por onde as filas seguiam ainda estão exatamente iguais.

Fui passeando e tentando trazer de volta o pequeno Leandro que corria por aqueles passeios com suas pernas finas. Durante quatro anos incríveis o menino fez daquele lugar sua vida. Lembrei das professoras, dos colegas, do consultório do Dr. Hoober, o dentista que cuidava dos dentes das crianças, e das correrias no recreio. E como a gente corria naquele tempo que era livre dos celulares! Em cada canto de prédio que eu virava, uma nova lembrança e uma nova emoção. Mas posso afirmar, sem correr risco de ser injusto ou exagerado, que nada se comparou ao sentimento de quando eu a vi.

Fui me dirigindo ao antigo prédio onde ficavam secretaria e direção. Um cheiro bom de folhas passadas pelo mimeógrafo foi passeando minha memória. Sons de crianças falando alto, expectativa com relação à merenda, a correria quando se ouvia o sinal soar... Curiosamente, agora tudo parecia tão menor, pois a lembrança que tenho é de ver aqueles lugares de baixo para cima. Ali estavam os degraus da área coberta, de onde a diretora sorria olhando a criançada nas filas. Ao virar os olhos para a direita, vi a escada que levava até a minha sala de aula da segunda série, com sua porta de madeira marrom e o número da turma desenhado em uma folha de papel colada. Continuei andando naquela direção e aos poucos fui sendo invadido por uma sensação estranha. Não era a mesma coisa que ia sentindo quando passei pelos outros espaços da escola. Todas as lembranças estavam sendo maravilhosas, mas algo ia subindo pela minha espinha e me arrepiando. Até que eu a vi, entre o prédio da secretaria e a minha antiga sala de aula da segunda série. Quase quarenta anos depois, a planta está lá!

    Não se tornou a árvore frondosa que eu imaginara na época. O tronco fino, comprido e tortuoso procurou espaço entre os prédios e as demais árvores que já estavam lá há anos. Seguiu vertical e constantemente em direção ao céu. Segue sendo pequena se comparada às árvores que já estavam lá muito antes dela, como as timbaúvas e seus frutos em forma de “orelha de macaco”. Mas ela perseverou, encontrou seu lugar e conseguiu seguir até banhar suas pequenas folhas com a luz do sol. Quarenta anos desde que saiu das mãos de um menino de nove anos para garantir sua presença no mundo e exercer seu direito de viver. E vive!

Que sensação estranha, e ao mesmo tempo incrível! A muda de pau-brasil que plantei na escola cresceu praticamente comigo e eu sequer lembrava dela até voltar ali e encará-la. Não estávamos próximos, mas vejo que seguimos conectados até hoje. Tal e qual, cresci à sombra de outras árvores mais antigas, maiores e que, as vezes, também parecia me tirarem o sol, me diminuírem as chances de “fotossintesear” livremente. Qual ela, fui procurando meus caminhos em direção à luz, até encontrá-la e mantê-la vívida energizando cada célula. A árvore foi a marca que o pequeno menino deixou naquela antiga escola onde cresciam crianças de seis a dez anos, aproximadamente. De certa forma, quando cobri suas raízes com terra, na esperança de vê-la crescer e viver, também plantei ali um pouco de mim, de minhas expectativas, de minha vontade de um dia ter meu lugar ao sol.

Fiz uma foto com meu celular, toquei em seu tronco sorrindo e me despedi. Parece que a ouvi murmurar algo, como um agradecimento, mas acho que era apenas o som do vento em suas folhas. De qualquer maneira, respondi mentalmente um “Eu que agradeço, minha amiga!”. Neste momento meus olhos inundaram. Ao lado da minha árvore plantei uma lágrima... e segui meu caminho.


À esquerda, eu declamando em uma
festa junina em 1985. À direita, o mesmo
ângulo em 2023.











........................................................


Me segue no Instagram: @leandrodearaujopoesia e @aquecimentocenico

E no Twitter: @Le_Aquecimento e @poesiagaucha


E minha galeria no Flickr

Adquira o livro aqui


Comentários

  1. Recebi de uma colega o Texto: O menino e a árvore. Fiquei emocionada... Lembrei do Ipê branco, que também plantei no Santa, com os meus pequeninosl Nostalgia pura!!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado pelo carinho! Feliz em poder trazer estas lembranças tão bonitas. Abração!

      Excluir
  2. Parabéns Leandro, tua história de infância é muito linda e de alguma forma nos leva até uma época distante da história de cada um de nós , mas a lembrança da árvore plantada e doada de coração para a escola, e tu menino ainda talvez nem soubesse da lembrança e da emoção contida neste encontro!! Parabéns !! 🌱

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito obrigado pela mensagem e pelo carinho!!! Abração!!!

      Excluir
  3. Rosaura Madruga da Rosa

    ResponderExcluir
  4. Lindas memórias da infância. Obrigado por compartilhar. Estudei nos dois colégio. Riquezas de vivências. Inauguramos o Poli. Ali ao lado da escola plantamos mudas de árvores. Será que existem??

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado pelo carinho! Também trago lindas lembranças das duas escolas, que seguirão comigo sempre. Um abração!

      Excluir

Postar um comentário