ESPINILHO
Leandro de Araújo
- Pega tuas coisas e desocupa o rancho,
pois a quem de direito pertencia, morreu na guerra. Um herói da Pátria!
Assim chegou a notícia da morte do
marido à Benícia Pinto. O fim da guerra não lhe trouxe paz, muito pelo contrário.
Perdera o homem, a casa e o que lhe sabia de dignidade. As coisas que o Coronel
lhe dera ordem de levar, que traria às costas desde então, eram um saco de
roupas surradas, uma tristeza sem medida, um filho pequeno de primeiros trotes e
um outro no bucho.
A vaquinha de leite fora confiscada pelo patrão, “à mode pagar o aluguel de
ano e pico em que a senhora vivera em minhas terras”. A tira de charque e
um pão caseiro foram os únicos presentes, regalo de uma vizinha solidária, cuja
casinha ficara sob seus cuidados, já que seu homem havia voltado vivo da
guerra.
O que é mesmo a estrada real para
quem não tem rei ou reino? Apenas o caminho onde impera um sofrimento sem fim.
Para não morrer de sede, bebia água suja de sanga. Para não morrer de fome,
comia restos e ratos. Dividiu a carniça de uma novilha com um sorro,
que se mostrou mais generoso que os homens que conhecera. Sabino, seu pequeno
companheiro, ia aprendendo a ser feroz como um bicho. Se escondia de cavaleiros
e andarilhos, pois sabia bem do sofrimento que estes poderiam causar a si e a
mãe. Como um pequeno capincho,
o menino ia aprendendo a sobreviver mais rápido que as ameaças ao seu redor.
Com três anos já sabia caçar pequenos lagartos e roedores, para alimentar a mamãe
e o maninho, que sequer ganhara um nome, mas que passava o dia grudado nas
tetas, qual um carrapato.
Como uma ninhada de bichos, às vezes se
escondiam em uma gruta, de onde ouviam as vozes dos campeiros que cruzavam a
cavalo. Ficavam em silêncio até sentirem que os passantes se afastavam. Havia
aí alguns dias ou semanas de paz, comendo frutos da mata e se abrigando da
chuva e do frio. Até que outros descobrissem sua precária morada e colocassem
todos a correr campo à fora, pois “Onde já se viu dar guarida para intrusos
dessa maneira? Logo teremos uma vila por aqui!”
Fazia cinco anos que Benícia carregava
seus molambos e filhos a cabresto.
Se a fome e o frio não os havia matado, não seria mais um inverno que lhes
traria este fim. Essa era sua esperança maior. No entanto, o pequeno sem nome,
que nunca agarrara um estado de gente, não suportaria mais uma invernia sem um abrigo
decente. O calor da mãe e o cuidado do irmão mais velho não seriam mais fortes
que a morte que rondava. Em um agosto de frio e chuva, de olho seco, a viúva e
o primogênito enterraram o corpo sem vida, magro e pequeno, em uma cova rasa aos pés de um
espinilho.
- Ele vai ficar aqui assim sem nome,
mamãe? – falou Sabino franzindo o cenho.
- Vai, meu filho. Para quê dar nome a
alguém que não tem começo nem fim nessa vida?
- Então vou chamar ele de Zé. Zé
Espinilho.
A mulher nada respondeu. A inocência do
pequeno Sabino não percebia na mãe a dor do corpo do irmão sendo engolido pela
terra. Para ele, estavam plantando no chão do pampa mais uma árvore. Quando
voltassem ali, o irmãozinho estaria enraizado, peleando contra o vento, pedindo
licença para a vida. Ergueu-se, juntou seus trapos e seguiu a direção que o
vento gelado lhe apontou.
Benícia e Sabino jamais chegavam perto
demais das estâncias. Sabiam que as pessoas que viviam nestes lugares
normalmente não recebiam com muita hospitalidade andarilhos ou pedintes. Mesmo
os restos das carneações, os estancieiros preferiam dar aos cachorros, ou
mandar enterrar, que dar a andarilhos. Temiam que, assim como corvos ou
graxains, acabassem se acostumando mal e se achegando. Em 1876, mesmo já tendo
passado mais de meia década do final da Guerra do Paraguai, ainda havia muita
desconfiança com relação a gaudérios ou
bugres,
pois muitos desertores andavam carneando gado no campo, estuprando mulheres ou
cometendo assassinatos. Os criadores de gado estavam sempre em alerta e
montavam verdadeiras milícias para proteger seu patrimônio. Benícia não podia
deixar de estar atenta a tudo, enquanto Sabino aprendia a sobreviver se
escondendo na copa das árvores, embaixo d’água ou distraindo estes homens
enquanto dava chance de sua mãe se abrigar como fosse.
O sol morno da primavera trazia uma cor
bonita para os campos do pampa. Destacava o verde e iluminava as aguadas.
Grandes nuvens brancas pintavam o céu que, como gigantescas naus, cruzavam o
mar azul em direção ao sul. As flores pintavam de amarelo as coxilhas e os
pássaros cantavam alegremente tentando atrair suas fêmeas. Fazia tempo que
Benícia não sorria, e ao ver a mãe esboçar um leve sinal de alegria em seu
rosto, Sabino sentiu-se feliz como nunca. Estavam há uns quatro meses vivendo
em uma cabana sofrível que haviam construído próximo a uma sanga, no costado de
um capão de mato. Frutas e peixes os alimentavam, a água era boa e ninguém
cruzava por ali. A mulher já devia estar com vinte e cinco anos e o menino
beirava os sete. Difícil contar o tempo com exatidão quando se tem como
referência apenas as estações do ano ou as fases da lua. Acompanhar o
crescimento do menino, por outro lado, dava uma certa ideia de tempo
transcorrido, mas isso era incerto, pois o pequeno crescia tendo que adaptar-se
ao mundo de forma diferente dos demais de sua idade. A única coisa que a viúva
tinha certeza era de que aquele tempo de paz não duraria, pois estava definido
por alguém muito poderoso que mulheres como ela tinham como destino apenas
sofrer e andar. Desde que fora expulsa de casa, essa se tornara sua sina. E já
havia uma certa resignação em seu penar.
Benícia sabia que mesmo naqueles breves
momentos de tranquilidade, aquela não era vida para seu pequeno Sabino. O
menino crescia sozinho, era forte e esperto, mas não sobreviveria por muito
tempo sem a segurança de um teto, da companhia de outras pessoas em quem
pudesse se amparar quando ela não estivesse mais por ali. A mãe sabia que seu
tempo estava acabando. Viver de restos e achados, a vida nômade, a intempérie...
tudo isso estava minando sua saúde rapidamente. Quando via seu reflexo na água
da sanga, não se reconhecia mais. Aquela velha cadavérica que olhava para ela
parecia a própria imagem da morte. Nesses momentos, em que delírios tão
assustadores quanto confusos vinham à sua mente, a tristeza se achegava com
mais força que nunca, fazendo-a pensar em desistir de tentar sobreviver.
Contudo, bastava um gesto, um sorriso ou uma conquista do filho para que a mãe
tivesse certeza de que não poderia se entregar enquanto não deixasse seu
pequeno em segurança. Estava decidida que aquela vida miserável precisava
acabar. Precisava deixar o filho viver uma vida que não vivera.
Um laço cruzou o ar fazendo um som de
assovio abafado. Não havia como prever, pois quem estava na outra ponta da
corda conhecia o lugar tão bem quanto os bichos que ali habitavam. Quando o nó
cerrou, prendeu os braços do menino sem dar-lhe tempo de reagir. Ao ouvir seus
gritos, que mais pareciam guinchos de um animal acuado, a mãe já não tinha o
que fazer. Deixou os braços caírem ao lado do corpo e ficou aguardando mais um
castigo que a vida iria lhe impor. Ficou assim por um tempo, imóvel e em
silêncio. Aos poucos viu que os gritos do filho, agora preso por dois braços
fortes, acalmavam e davam lugar a grunhidos chorosos a uma respiração forte e
acelerada.
- Quem são vosmecês? O que fazem por
aqui? Onde está o homem? – falou o do laço, em tom enérgico, sempre olhando
para todos os lados, como se estivesse esperando o ataque de algum atocaiado.
Permaneceram em silêncio por alguns
segundos. O homem que segurava o menino era grande e forte. Usava bombachas
largas, calçava botas sem esporas. Trazia à cinta uma faca embainhada e usava
ao pescoço um lenço esbranquiçado e encardido. Na cabeça, um chapelão negro
dava a sua cabeça máscula um tamanho ainda maior do que tinha. Intimidada pela
imponente e ameaçadora figura, Benícia, sem erguer os olhos e com as mãos
postas em prece, falou em um tom tão baixo que quase não se fazia ouvir:
- Não somos ninguém, senhor. Estamos
aqui pelo tempo que a vida tem nos dado a chance de ficar. Os únicos homens
aqui são o senhor e este que está aí, preso pelo seu laço. Não machuque meu
menino, por favor!
O homem do laço olhou para baixo e viu
dois olhos meninos, arregalados como de um animal selvagem pronto para atacar,
olhando para os seus. A criança, sentido os braços daquele o que prendia
frouxarem um pouco, percebeu que era possível safar-se. Escorregou como uma
cobra para baixo, livrando-se aos mesmo tempo do homem e do laço que o
prendiam. Correu para a mãe, enlaçando suas pernas, e ali permaneceu com a
respiração ofegante e os olhos sempre arregalados. Uma cruzeira pronta
para o bote, pensou o gaúcho.
- Não fujam! Não quero lhes fazer mal. –
ralhou o homem de forma seca, mas sem ódio, que continuou – Os peões haviam
dito que viram sinais de pessoas nesta beira de mato. Pensei que eram ladrões
de gado ou desertores fugidos da justiça. Precisei ver com os próprios olhos. Não
sou seu inimigo, apenas quero saber o que fazem aqui.
A jovem mulher então resumiu, da forma
que pode, um pouco de sua história nômade. Os caminhos que havia cruzado, as
dificuldades, a fome. O estranho ouviu a história, em um silêncio pensativo,
tentando decidir o que faria com aquela dupla impensável que agora o olhava tristemente.
Deixá-los ali, além de desumano, certamente deixaria o patrão desgostoso.
Levá-los à estância seria um risco, pois são dois estranhos, cujo passado era
um mistério. Seriam ladrões? Ou realmente apenas duas vítimas do fim de uma
guerra cruel? Olhou ao redor e viu a miséria em que viviam. Não era uma cabana,
era uma toca. Não vestiam roupas, mas trapos. Estavam sujos, com uma sujeira
encardida de meses. E ainda havia aquele cheiro...
O homem ordenou que pegassem o que fosse
útil e o acompanhassem. Iria levá-los até o Coronel para que ele lhes dissesse
o que fazer. Também disse para que não tentassem fugir, pois iria levá-los a
qualquer custo, e não queria lastimá-los. Disse que se chamava Juvêncio Terra e
que era o capataz da Estância do Lajeado. Sua expressão, agora mais tranquila,
dava-lhe um ar jovial, quase fraternal. Tinha a pele tostada do sol e com
marcas do tempo e de cicatrizes no rosto, mas não aparentava ter mais de
quarenta anos. Estendeu a mão calejada à viúva e ajudou-a a sair da ponta de
mato que os abrigava.
Ao saírem do capão, viram que o homem
havia deixado ao longe um cavalo amarrado à sombra de uma árvore. Preso no
basto,
um par de esporas penduradas aguardava em silêncio. Assim conseguira chegar ao
esconderijo sem ser ouvido. “Sabido!”, pensou o menino, que seguia em silêncio
à sombra da mãe, como um cão fiel.
- Senhora! – falou o homem com sua voz
grave e, agora, muito calma – A casa da estância fica há umas duas horas daqui.
Está visto que não consegue andar por tanto tempo. Pode montar que
acompanharemos ao lado. Mas não tente nenhuma gracinha! Lembre que seu menino
está aqui comigo e que levá-lo sozinho talvez seja pior para os dois.
A ideia de fugir sequer havia ocorrido à
mulher. A mínima possibilidade de deixar seu companheiro de estrada e
sofrimento para trás já tornava uma fuga impensável. Ademais, desde que ganhara
o mundo, jamais havia se dado ao luxo de pensar em tamanha gentileza. Mesmo
sentindo-se prisioneira do estranho, este lhe havia oferecido o cavalo para que
não precisasse andar. Algo inimaginável até então. O menino olhava por baixo de
uma testa enrugada aquele tipo estranho que os escoltava. Bom cavalo, boa faca
e botas de couro, agora com esporas. Nunca havia visto estas coisas tão de
perto. Alguém acostumado a ver apenas restos e achados, qualquer sinal de
bonança ou dignidade parecia mais uma ameaça que uma esperança.
Quanto tempo de andanças? Quanto tempo
fugindo de bandidos? De fazendeiros tão perigosos quanto? Quantas vezes teve
que esconder o menino para que não o levassem? E quantas vezes teve que se
entregar a gaudérios sujos em nome de não ser morta, ou de um pedaço de charque
azedo? Pelas suas contas, sete anos passados... Sabino já devia ter completado
oito de idade. Ela por volta de vinte e seis.
Durante quase uma hora o improvável trio
seguia em um silêncio que era cortado pelos gritos de um quero-quero ou o voo
de uma perdiz. O sol já se aproximava do horizonte, indicando que o dia estava
findando. Um ar fresco de primavera batia em rostos cansados e sérios. Apenas o
menino parecia se divertir com a novidade. Já passada a preocupação com relação
aquele ser estranho que os acompanhava, passava mais tempo admirando suas
roupas limpas, o grande chapéu negro, as botas de couro e aquela grande faca
presa às costas pela guaiaca.
O homem prendia em uma das mãos uma soga presa
ao freio do cavalo. Na outra mão trazia um rebenque de
couro, que tanto podia parecer uma intimidação, quanto apenas para compor
aquela imagem tão singular ao menino. Entre os lábios, um palheiro,
às vezes apagado, completava a silhueta do gaúcho.
Só depois de uma hora de caminhada Juvêncio
interrompe a calmaria:
- Onde está o pai do menino? – fala com
o palheiro entre os dentes semicerrados.
O corpo da viúva balançava para frente e
para traz ao passo lento do cavalo. Ela estava com os olhos fechados quando a
voz máscula e grave do capataz cortou seus devaneios.
- Morreu. Na guerra. – disse isso sem
abrir os olhos ou esboçar qualquer sentimento.
- Essa maldita guerra deixou no chão estrangeiro
muitos dos nossos melhores homens. Muitas viúvas, assim como a senhora, ficaram
espalhadas por esta terra. Algumas foram acolhidas de volta pelas próprias
famílias, outras, que não tinham para onde ir ou que não eram produtivas aos estancieiros,
não tiveram escolha senão virar china de soldado ou mendigar até morrer de fome ou nas mãos de bandidos andarilhos. Estive na
guerra com meu patrão. O Coronel trouxe a maioria dos seus peões de volta pra
casa. Contaremos sua história para ele. É um homem justo, vai saber o que fazer.
Assim seguiram sem dizer outra palavra
qualquer durante mais uma hora de jornada. “É um homem justo... É um homem
justo...”. A frase do capataz ficou ecoando na cabeça da mulher que, sem ter
mais ao que se agarrar, resolveu pela última vez acreditar nos homens, em nome
da vida de seu filho. “Justo...” “Justo...”
Ao chegarem na estância, já era
tardinha. O sol se punha e uma aquarela vermelha banhava os morros atrás da
casa grande. Era a sede da estância uma construção imponente de paredes brancas
coberta por um bonito telhado de barro. Quatro grandes janelas marrons, de duas
em duas, ladeavam uma enorme porta de madeira na parte da frente da edificação. Próximo
à casa, do outro lado do terreiro, um galpão de frente aberta onde descansavam
arreios de cavalos sobre cavaletes feitos de pau, algumas ferramentas presas às
paredes. Era possível ver ao fundo uma porta que levava a uma espécie de
alojamento, de onde se ouvia vozes e risadas masculinas. Mais além via-se uma
grande mangueira onde descansavam as vacas de leite.
Juvêncio trouxe o cavalo e prendeu-o a
uma grande figueira que se encontrava em frente ao galpão. Ajudou a mulher a
apear e pediu que esperassem ali até ver com o patrão quais seriam os próximos
passos. Minutos depois, volta e pede que mãe e filho o acompanhem. Anexo à
casa, na parte dos fundos, uma pequena construção de madeira escura destoava da
alvura da grande casa de alvenaria. De dentro vinha um cheiro de lenha queimada
e café recém passado. Ao entrarem, a pequena família composta por duas pessoas
percebe se tratar de uma cozinha rústica, com um grande fogão à lenha onde
descansavam algumas chaleiras fumegantes, uma grande mesa de madeira coberta
com uma toalha manchada e alguns poucos móveis simples. Próximo ao fogão uma
mulher mexia em panelas e caminhava de um lado para o outro sobre o assoalho de
madeira que rangia a cada passo. Ao lado do fogão, em um banco baixo coberto
por um pelego, estava um homem muito sério, segurando em ambas as mãos uma cuia
de chimarrão de onde saía uma fumaça convidativa. O homem olhava para a cuia e,
quando sentiu a presença dos convidados, ergueu os olhos calmamente. Sua voz
metálica preencheu todos os espaços do lugar:
- Então, Juvêncio, esses são os dois
moradores que ocupavam o capão de mato da invernada do
fundo. Entrem. Cheguem mais perto para que possa vê-los melhor.
Era Licurgo Prates, o Coronel, um homem
que tinha por volta de sessenta anos. Usava uma bombacha remangada ao meio da
canela, estava de pés descalços e vestia uma camisa abotoada até a metade. Não
era tão alto quanto Juvêncio, mas impunha tanto respeito quanto fosse
necessário, pois seu olhar penetrava direto nos olhos do interlocutor, como se
estivesse tentando ver muito mais do que a aparência permitia. O cabelo e a
barba grisalhos indicavam experiência e davam um ar de sabedoria. A voz metálica,
mas calma, não parecia vir de uma pessoa que vinha da guerra, lugar de gritos e
desespero. Ao seu lado repousava escorada à mesa uma bengala de madeira com
cabo de metal. “Seria consequência da guerra?”, pensou a mulher.
O coronel coçava a barba enquanto analisava
as duas pessoas trazidas à sua companhia. A mulher tinha um olhar jovem, apesar
do rosto judiado e da silhueta extremamente magra. Tanto ela quanto o menino
não vestiam roupas, mas molambos sujos e malcheirosos. Nas mãos e rostos de
ambos havia marcas de cortes e picadas de insetos. Os cabelos, sujos e sebosos,
eram compridos em ambos. Olhavam para baixo como dois bichos que haviam sidos
presos em um alçapão. O velho quase ouvia seus corações batendo, mesmo estando
há uns dois metros de distância. O cheiro insuportável, uma mistura de suor,
peixe podre e urina de dias, empestou o lugar.
- Quem são vocês? – perguntou o Coronel.
- Ninguém de importância, senhor. – choramingou
a mulher sem erguer os olhos. O menino olhava para os pés do homem, achando
estranho o fato de estarem limpos e de unhas aparadas. – Somos apenas dois
filhos da guerra.
- Todos têm alguma importância, moça.
Vê-se que o menino é muito importante para vosmecê, senão teria sofrenado o
cavalo e fugido de meu capataz. Pelo visto, o contrário também, pois o guri
parece um micuim agarrado em suas vestes. - o capataz, que havia ficado à porta, fumando um de
seus crioulos,
riu um sorrisinho maroto de canto de boca, deixando escapar muita fumaça. A
mulher continuou:
- Meu filho e as dores que trago são as
únicas coisas que tenho, senhor. – dessa vez olhou bem nos olhos do homem à sua
frente, tentando ser mais forte do que podia naquele momento. – Além da vontade
de vê-lo vivo e são.
O coronel sorriu. Em seguida largou a
cuia na mesa e levantou. Com ajuda da bengala, mancou até mais perto da mãe e do
filho. Olhando-os com olhos apertados e uma visível expressão de curiosidade.
- Que estão vivos eu não tenho dúvida.
Agora... sãos? Não sei. Está visto que precisam de ajuda. Como se chamam? De
onde vêm?
- Me chamo Benícia. Esse que vem grudado
em minhas vestes e alma é meu filho Sabino. Viemos do que sobrou da guerra.
Agora muito próximo, o homem, desta vez olhando
mais para o menino que para a mãe, perguntou:
- Qual seu sobrenome? A quem serviam
antes de ganhar esse mundo de Meu Deus?
Antes mesmo da mãe responder, o menino,
pela primeira vez abre a boca e, olhando nos olhos do velho Coronel, fala.
Estava encantado com aquele lugar tão diferente e bonito:
- Espinilho. Sou Sabino Espinilho. – o
menino falou o nome com tamanha convicção que a mãe sequer pensou em
contrariá-lo. Seu sobrenome de batismo realmente talvez devesse ter ficado lá
na casa de onde haviam sido expulsos. Nunca mais haviam falado nele em mais de
seis anos de caminhada pelo pampa. Espinilho. Gostou.
- O pai do menino morreu na guerra,
senhor. O que nos sobrou desde então são esta vida miserável e esses trapos. Não
somos ladrões. Não tocamos em suas coisas. Vivíamos do que o campo nos permitia
pegar. E assim temos vivido durante muito tempo. – completou a mulher, agora
sentindo-se um pouco mais à vontade ante presença do homem estranho que os
recebia.
Benícia continuou falando mais um pouco,
relatando parte do que haviam vivido nestes anos de andanças. O velho ouvia
tomando seu chimarrão, andava pelo cômodo apoiado em sua bengala enquanto
balançava a cabeça assentindo aqui e ali. Vez por outra o menino completava as
frases da mãe, acrescentando um detalhe ou outro. Ouviu o relato até o final,
suspirou fundo e então sentenciou:
- Uma vergonha uma moça jovem como a
senhora ganhar o mundo desse jeito por causa de uma guerra que não pediu. Criar
um menino como um bicho desse jeito... Isso não é direito. Não tenho muito, mas
preciso de mãos dispostas a trabalhar. E temos muito trabalho por aqui. Se
quiserem ficar e trabalhar, podemos arrumar um lugar melhor que o capão de
mato, além de comida e banho decentes. Está visto que precisam muito dos dois.
Não havia o que pensar. Olhos que há
muito desistiram de chorar desta vez estavam úmidos. O menino, que não lembrava
mais a última vez que vira a mãe chorar, estava assombrado e ao mesmo tempo
encantado com as lágrimas que escorriam largas em seu rosto. Não compreendia
direito as palavras do velho, mas sentia que ele não era uma ameaça. A fera que
vivia em seu peito de menino não se senti acuada. Estava quieta. Segurou com
suas duas pequenas mãozinhas a mão da mãe. Seus olhos se encontraram. Sorriram.
Sem dizer palavra, a mulher apenas
acenou positivamente com a cabeça, limpando os olhos com as mangas sujas dos
trapos que vestia.
- Dona Maura, leve esses dois para o
quarto de banho dos fundos. Dê a eles o que for preciso para tirar essa
imundície, até creolina se o sabão não resolver. Enquanto eles se afeitam, veja
o que pode arrumar para que se vistam com decência. Juvêncio, mande queimar esses
trapos. – dona Maura, uma negra muito gorda vestindo um apertado vestido de
chita vermelho, com um lenço amarrado à cabeça, sorri, deixa os afazeres da
cozinha e sai em passinho miúdo para cumprir as ordens do patrão. Apesar de
ainda haver escravos no Brasil, ela havia sido alforriada pelo coronel há
meses. Mais do que empregada da casa, era uma espécie de governanta e, às
vezes, conselheira. Não tinha mais do que cinquenta anos, mas com tudo que
havia vivido, a “velha solteirona”, como zombavam os peões, sempre tinha boas
histórias para contar, o que fazia dela uma das pessoas mais queridas da
estância. Boa contadora de histórias e boa na organização da casa, era o braço
direito da esposa do coronel.
Quando a função do banho já havia
terminado, a própria Dona Maura os recebeu à porta do banheiro. Deu-lhes o que
comer e encaminhou-os para o quarto onde passariam aquela primeira noite.
Improvisaram em um canto do galpão uma cama com pelegos e alguns cobertores
velhos. De qualquer forma, mãe e filho não conseguiram descansar. Dormiram
sonos pequenos separados por sonhos estranhos. Sentiam os olhares dos peões que
passavam pela entrada do alojamento falando baixo. Ela temia que tudo aquilo não
passasse de um engodo. Durante a noite, falaram em fugir, ganhar o mato
novamente, pegar o que conseguissem para comer. Mas nada fizeram. Pela primeira
vez em anos não dormiam sobre pedras ou direto no chão. Não tinham sob suas
cabeças as estrelas nuas, a copa de árvores ou o orvalho da madrugada. E
estavam com a barriga cheia de comida de gente.
Espinilho... Por que o menino escolheu
como sobrenome o nome da árvore onde haviam sepultado, sob sua parca sombra, o
irmão morto? Uma árvore tão pequena, que não dá frutos ou flores bonitas. De
madeira irregular e que não servia sequer para fazer um moirão? Na verdade,
Benícia sabia o motivo. Era o espinilho uma árvore sobrevivente. Resistia ao
mais rigoroso dos invernos e ao verão mais escaldante com a mesma força. Sua
madeira, apesar de possuir um tronco fino, possuía um cerne vermelho e muito
resistente. Em vez de frutos e flores, seus galhos eram adornados por
pontiagudos e doloridos espinhos. O pequeno Sabino havia crescido não como um
ser humano, mas como um espinilho que nasceu ao acaso no campo, sem ser semeado
por ninguém, e por ali vivia resistindo às intempéries, ao tempo, aos homens.
Daquele momento em diante, não mais havia Benícia Prates, se chamaria apenas de
Benícia Espinilho.
Primeiros trotes: recém aprendendo a andar.
Bucho: útero, ventre.
Charque: carne salgada e seca.
Estrada real: estrada principal da região da campanha. Leva este nome pois era
por esta estrada que, no período do Brasil Império, transitaria o imperador,
caso viesse revistar as sesmarias.
Sorro: graxaim, cachorro do mato.
Capincho: capivara.
Cabresto: pedaço de corda.
Espinilho: arbusto espinhento nativo dos campos do pampa.
Gaudério: andarilho, desocupado, vagamundo.
Bugre: se designava bugre os mestiços de brancos com nativos.
Cruzeira: cobra peçonhenta, da família das jararacas. Urutu.
Basto: cela, peça da encilha do cavalo que fica sob os pelegos, onde o
cavaleiro vai sentado.
Guaiaca: cinturão de couro cru.
Soga: toco de corda ou pedaço de laço.
Rebenque: tipo de relho com ponteira larga e chata que serve para bater no
cavalo e fazê-lo correr.
Palheiro: cigarro de palha.
China de soldado: prostituta. As chinas de soldado acompanhavam os pelotões
militares em campanha, onde vendiam o próprio corpo e sobreviviam dos restos de
batalhas.
Mangueira: curral onde ficava preso o gado que estava sendo trabalhado pelos
peões na sede da estância.
Invernada: espaço delimitado de terra onde os criadores deixam o gado por um
determinado tempo.
Micuim: minúsculo parasita, da família dos carrapatos.
Crioulo: palheiro, cigarro de palha.
Cuia: porongo, cabaça que serve de recipiente para servir o chimarrão, mate.
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