Era uma delegacia de polícia. Um prédio antigo, onde nas
paredes havia apenas papéis colados com avisos e alguns cartazes com propaganda
do governo. Um ventilador de teto balançava e girava fazendo mais barulho que
vento. Um cheiro de cigarro misturado com o de café queimado empestava o ar. Apenas
uma mesa por traz o balcão de atendimento, onde um policial de farda estava
digitando concentrado alguma coisa em seu computador. De repente, uma voz em
tom ameaçador quebra o silêncio do lugar:
- Eu quero registrar uma ocorrência!
O policial, surpreso, ergue a cabeça em direção ao balcão
de atendimento e não vê ninguém. Levanta, dá uma olhada por cima. Nada. Vai até
a porta da rua e vê apenas algumas pessoas passando pela calçada para lá e para
cá. Coça a barba grisalha, respira fundo e volta para seu trabalho no
computador.
- E então? Não vai me atender mesmo?
Dessa vez o homem da lei levanta rapidamente e coloca a mão
ao lado da cintura, como se estivesse se preparando para sacar uma arma.
- Oi! Aqui no balcão, ao lado desse carimbo velho!
Devagarinho o policial vai andando até o balcão e, com os
olhos semicerrados, percebe que entre um velho carimbo caído e um copinho
plástico com resto frio de café está uma pequena joaninha vermelha, pintada com
bolinhas pretas. Chegando mais perto, percebe que o pequeno inseto o encara,
olhando seriamente, com uma das seis patinhas posta onde deveria ser sua
cintura. Sem tirar os olhos arregalados do inseto, o homem levanta o copo e
cheira para ver se o que continha ali era realmente café. Era.
- Olha só, – diz o inseto agora com uma expressão mais
amena – eu quero registrar uma ocorrência por danos morais. – pensou um pouco e
completou – Talvez por apropriação indébita também.
Sem acreditar direito no que via e, principalmente, ouvia,
o policial olha para os lados para ver se havia mais alguém na sala naquele
momento. Estava só. Quer dizer, só mesmo, não. Estava certamente ouvindo uma
joaninha pedir para registrar uma ocorrência policial. Devo estar ficando doido...
– pensou ele.
- Desculpa. Eu ouvi você falar comigo? – perguntou o
policial franzindo o senho.
- Claro que ouviu! Tem mais alguém aqui por acaso? – respondeu
o inseto, com visível impaciência.
- Olha, me perdoe. Não estou acostumado a atender criaturas
de outras espécies aqui. – deu um sorrisinho nervoso de canto de boca e virou
para outro lado, balançando a cabeça, falando baixinho - Devo estar ficando
maluco mesmo, estou falando com uma joaninha.
- Bom, isso não é problema meu. O meu problema, de verdade,
é que preciso registrar uma queixa. Pode ser com você ou tenho que procurar
outro policial? E isso tem que ser para logo, pois a situação é urgente.
- Está bem! Está bem. Supondo que eu não esteja maluco e
que esteja ouvindo realmente a reclamação de um inseto, em que posso lhe
ajudar? - pergunta o homem coçando a nuca e fazendo uma careta de estranheza.
- Pois bem. - seguiu falando o pequenino ser – O que
acontece é que uma das minhas marcas registradas, algo que me faz ser conhecida
no mundo inteiro há décadas, está sendo surrupiado pelo homem em plena luz do
dia. E ele nem tenta disfarçar ou fica vermelho!
- Certo. Vou tomar nota do seu depoimento. – o policial
pega um toco de lápis e uma folha de papel em branco e começa a anotar meio
aéreo as respostas a perguntas um tanto sem sentido, que fazia por puro cacoete
– Como você se chama? Onde mora? Trabalha com o quê?
- Me chamo Carocha. Mas os amigos me conhecem como
Carochinha. Nasci em Portugal, onde desde muito nova inventava histórias que
contava para crianças. Há algumas décadas vim para o Brasil, onde comecei
contando alguns causos, até ganhar uma certa fama e ser conhecida como aquela
que criava as Histórias da Carochinha.
- Sério? Eu estou falando com a famosa criadora das Histórias
da Carochinha em pessoa? Quer dizer, em inseto?
- Sim, sou eu mesma. Ou era. Ah! Já nem sei mais. O que
acontece é que o humano tem contado tantas histórias malucas e mentirosas, que
minhas histórias já perderam totalmente a graça. Algumas daquelas que eu
contava parecem até verdade perto destas que o ser humano tem contado.
O homem da lei para de anotar por um momento e, intrigado,
começa a prestar mais atenção no que a pequena criatura estava dizendo. A
joaninha segue seu depoimento:
- Tenho ouvido cada história! Algumas são difíceis de
engolir. É doença que não mata, vacina que faz mal, remédio que não remedia e gripezinha
que, na verdade, mata aos milhares. Tem fome que não existe, floresta que não
pega fogo, queimada que não queima, desmatamento que não desmata, racismo,
machismo e homofobia do bem. É condenação sem prova, juiz que vira ministro que
vira traidor que vira candidato. Tem rachadinha, tem centrão, tem polícia que é
bandido e bandido que é amigo de capitão. Tem cheque que ninguém sabe quem pagou,
droga que voa de avião presidencial, chocolate que vale mais que ouro... Até histórias
de Terra plana estão contando por aí!
Naquele momento o policial, que já não anotava mais nada, apenas
consentia balançando a cabeça afirmativamente, boquiaberto, a cada situação
apontada pelo inseto. Crescera ouvindo as Histórias da Carochinha, pequenas
historinhas que os adultos contavam para enganar as crianças, que seguiam
acreditando enquanto vivessem a ingenuidade típica da infância. Contudo, estas
histórias que a pequena joaninha enumerava tinham algo diferente, não
funcionavam da mesma maneira.
- Desculpa, dona Carocha, eu lhe entendo. Mas sinto muito,
não posso registrar sua ocorrência como crime. Há algo nessas histórias que a
senhora traz que são diferentes das antigas Histórias da Carochinha.
A pequenina criatura faz uma expressão séria, mas não diz
uma palavra, apenas senta no cabo do carimbo, cruza duas de suas seis patas e
estende outra, como quem diz “Explique-se!”. O homem segue:
- Suas histórias servem para iludir ou encantar as
crianças. Embalam seu sono, instigam sua imaginação. No entanto, na medida que
vão crescendo, elas vão deixando de acreditar na Carochinha, pois na mesma
proporção que a ingenuidade vai às deixando, vai crescendo a razão. Quanto
menos ingênua e mais racional a pessoa, menos fantásticas deixam de ser as
Histórias da Carochinha, até se tornarem apenas isso que são, histórias. Não
fazem mal a ninguém, senão tirar o sono de um ou outro menino medroso durante a
noite.
Quem balança lentamente a cabeça de forma afirmativa agora
é a joaninha, já com certa tristeza no olhar desapontado. O guarda, muito
sério, segue fazendo sua explicação:
- Estas outras histórias que você me traz não servem para ludibriar
crianças. Elas são contadas para adultos. Em vez de irem desaparecendo com a
chegada da razão, fazem exatamente o contrário. Vão sumindo com a razão das
pessoas até elas parecerem ter a ingenuidade das crianças novamente. As
histórias que você contava nos faziam sonhar, estas que nos contam hoje são um pesadelo.
Suas historinhas inspiravam as pessoas a viajarem através dos livros, as
histórias de hoje inspiram as pessoas a se esconderem atrás de armas. Sinto
muito, dona Carochinha, mas a sua queixa não procede.
Percebendo que o homem tinha razão, a pequenina Joaninha vai
se levantando em silêncio. Dá um profundo suspiro e, antes de alçar voo, volta
a cabeça para traz e olha o policial nos olhos. Não fala nada ao perceber que
lágrimas escorriam pela face do homem de farda. Então, abre as asas e sai
voando pela janela da delegacia. Do lado de fora, bate em uma placa carregada
por uma pessoa que vestia uma camiseta amarela, cai no chão e morre esmagada
pela sola de um coturno do tipo militar. Na placa, apenas uma palavra: MITO.
Comentários
Postar um comentário