CONTO 018 - A Carochinha


Era uma delegacia de polícia. Um prédio antigo, onde nas paredes havia apenas papéis colados com avisos e alguns cartazes com propaganda do governo. Um ventilador de teto balançava e girava fazendo mais barulho que vento. Um cheiro de cigarro misturado com o de café queimado empestava o ar. Apenas uma mesa por traz o balcão de atendimento, onde um policial de farda estava digitando concentrado alguma coisa em seu computador. De repente, uma voz em tom ameaçador quebra o silêncio do lugar:

- Eu quero registrar uma ocorrência!

O policial, surpreso, ergue a cabeça em direção ao balcão de atendimento e não vê ninguém. Levanta, dá uma olhada por cima. Nada. Vai até a porta da rua e vê apenas algumas pessoas passando pela calçada para lá e para cá. Coça a barba grisalha, respira fundo e volta para seu trabalho no computador.

- E então? Não vai me atender mesmo?

Dessa vez o homem da lei levanta rapidamente e coloca a mão ao lado da cintura, como se estivesse se preparando para sacar uma arma.

- Oi! Aqui no balcão, ao lado desse carimbo velho!

Devagarinho o policial vai andando até o balcão e, com os olhos semicerrados, percebe que entre um velho carimbo caído e um copinho plástico com resto frio de café está uma pequena joaninha vermelha, pintada com bolinhas pretas. Chegando mais perto, percebe que o pequeno inseto o encara, olhando seriamente, com uma das seis patinhas posta onde deveria ser sua cintura. Sem tirar os olhos arregalados do inseto, o homem levanta o copo e cheira para ver se o que continha ali era realmente café. Era.

- Olha só, – diz o inseto agora com uma expressão mais amena – eu quero registrar uma ocorrência por danos morais. – pensou um pouco e completou – Talvez por apropriação indébita também.

Sem acreditar direito no que via e, principalmente, ouvia, o policial olha para os lados para ver se havia mais alguém na sala naquele momento. Estava só. Quer dizer, só mesmo, não. Estava certamente ouvindo uma joaninha pedir para registrar uma ocorrência policial. Devo estar ficando doido... – pensou ele.

- Desculpa. Eu ouvi você falar comigo? – perguntou o policial franzindo o senho.

- Claro que ouviu! Tem mais alguém aqui por acaso? – respondeu o inseto, com visível impaciência.

- Olha, me perdoe. Não estou acostumado a atender criaturas de outras espécies aqui. – deu um sorrisinho nervoso de canto de boca e virou para outro lado, balançando a cabeça, falando baixinho - Devo estar ficando maluco mesmo, estou falando com uma joaninha.

- Bom, isso não é problema meu. O meu problema, de verdade, é que preciso registrar uma queixa. Pode ser com você ou tenho que procurar outro policial? E isso tem que ser para logo, pois a situação é urgente.

- Está bem! Está bem. Supondo que eu não esteja maluco e que esteja ouvindo realmente a reclamação de um inseto, em que posso lhe ajudar? - pergunta o homem coçando a nuca e fazendo uma careta de estranheza.

- Pois bem. - seguiu falando o pequenino ser – O que acontece é que uma das minhas marcas registradas, algo que me faz ser conhecida no mundo inteiro há décadas, está sendo surrupiado pelo homem em plena luz do dia. E ele nem tenta disfarçar ou fica vermelho!

- Certo. Vou tomar nota do seu depoimento. – o policial pega um toco de lápis e uma folha de papel em branco e começa a anotar meio aéreo as respostas a perguntas um tanto sem sentido, que fazia por puro cacoete – Como você se chama? Onde mora? Trabalha com o quê?

- Me chamo Carocha. Mas os amigos me conhecem como Carochinha. Nasci em Portugal, onde desde muito nova inventava histórias que contava para crianças. Há algumas décadas vim para o Brasil, onde comecei contando alguns causos, até ganhar uma certa fama e ser conhecida como aquela que criava as Histórias da Carochinha.

- Sério? Eu estou falando com a famosa criadora das Histórias da Carochinha em pessoa? Quer dizer, em inseto?

- Sim, sou eu mesma. Ou era. Ah! Já nem sei mais. O que acontece é que o humano tem contado tantas histórias malucas e mentirosas, que minhas histórias já perderam totalmente a graça. Algumas daquelas que eu contava parecem até verdade perto destas que o ser humano tem contado.

O homem da lei para de anotar por um momento e, intrigado, começa a prestar mais atenção no que a pequena criatura estava dizendo. A joaninha segue seu depoimento:

- Tenho ouvido cada história! Algumas são difíceis de engolir. É doença que não mata, vacina que faz mal, remédio que não remedia e gripezinha que, na verdade, mata aos milhares. Tem fome que não existe, floresta que não pega fogo, queimada que não queima, desmatamento que não desmata, racismo, machismo e homofobia do bem. É condenação sem prova, juiz que vira ministro que vira traidor que vira candidato. Tem rachadinha, tem centrão, tem polícia que é bandido e bandido que é amigo de capitão. Tem cheque que ninguém sabe quem pagou, droga que voa de avião presidencial, chocolate que vale mais que ouro... Até histórias de Terra plana estão contando por aí!

Naquele momento o policial, que já não anotava mais nada, apenas consentia balançando a cabeça afirmativamente, boquiaberto, a cada situação apontada pelo inseto. Crescera ouvindo as Histórias da Carochinha, pequenas historinhas que os adultos contavam para enganar as crianças, que seguiam acreditando enquanto vivessem a ingenuidade típica da infância. Contudo, estas histórias que a pequena joaninha enumerava tinham algo diferente, não funcionavam da mesma maneira.

- Desculpa, dona Carocha, eu lhe entendo. Mas sinto muito, não posso registrar sua ocorrência como crime. Há algo nessas histórias que a senhora traz que são diferentes das antigas Histórias da Carochinha.

A pequenina criatura faz uma expressão séria, mas não diz uma palavra, apenas senta no cabo do carimbo, cruza duas de suas seis patas e estende outra, como quem diz “Explique-se!”. O homem segue:

- Suas histórias servem para iludir ou encantar as crianças. Embalam seu sono, instigam sua imaginação. No entanto, na medida que vão crescendo, elas vão deixando de acreditar na Carochinha, pois na mesma proporção que a ingenuidade vai às deixando, vai crescendo a razão. Quanto menos ingênua e mais racional a pessoa, menos fantásticas deixam de ser as Histórias da Carochinha, até se tornarem apenas isso que são, histórias. Não fazem mal a ninguém, senão tirar o sono de um ou outro menino medroso durante a noite.

Quem balança lentamente a cabeça de forma afirmativa agora é a joaninha, já com certa tristeza no olhar desapontado. O guarda, muito sério, segue fazendo sua explicação:

- Estas outras histórias que você me traz não servem para ludibriar crianças. Elas são contadas para adultos. Em vez de irem desaparecendo com a chegada da razão, fazem exatamente o contrário. Vão sumindo com a razão das pessoas até elas parecerem ter a ingenuidade das crianças novamente. As histórias que você contava nos faziam sonhar, estas que nos contam hoje são um pesadelo. Suas historinhas inspiravam as pessoas a viajarem através dos livros, as histórias de hoje inspiram as pessoas a se esconderem atrás de armas. Sinto muito, dona Carochinha, mas a sua queixa não procede.

Percebendo que o homem tinha razão, a pequenina Joaninha vai se levantando em silêncio. Dá um profundo suspiro e, antes de alçar voo, volta a cabeça para traz e olha o policial nos olhos. Não fala nada ao perceber que lágrimas escorriam pela face do homem de farda. Então, abre as asas e sai voando pela janela da delegacia. Do lado de fora, bate em uma placa carregada por uma pessoa que vestia uma camiseta amarela, cai no chão e morre esmagada pela sola de um coturno do tipo militar. Na placa, apenas uma palavra: MITO.





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