A
HISTÓRIA DE JOANA
Joana sempre se comovia ao ver o pôr-do-sol.
Era como se assistisse todos os dias a morte de uma pessoa próxima, sabendo que
voltaria a vê-la no dia seguinte. Ultimamente, quando voltava da escola, tinha
a oportunidade de assistir a cena por completo, o horário e a distância que
percorria a pé até sua casa lhe davam esta oportunidade. E assim, andando em
silêncio, pensando nas coisas que encontraria quando chegasse em casa,
encontrava um conforto que quase a fazia ficar sentada, esperando que o sol não
se escondesse, que sua imagem ficasse parada, imune ao passar do tempo. No
entanto, logo a realidade caía sobre si de uma forma avassaladora... a mãe
quieta, sempre com aquela expressão de tristeza nos olhos, o irmão de dez anos
que a tratava com uma estranha, a irmãzinha chorando no berço e o padrasto, a
olhá-la daquele jeito estranho, deixando-a desconcertada com aquelas coisas
estranhas que falava. Por que será que cada vez que ele lhe dirigia a palavra
sua mãe parecia entrar em pânico? Várias vezes encontrou sua mãe chorando
depois destas conversas. E por que será que a mãe parecia mudar completamente
de comportamento nestas oportunidades? Será que ela, Joana, estiva fazendo
alguma coisa de errada ou provocando aquelas conversas? Não sabia as respostas.
E ao pensar nestas coisas, lágrimas brotavam-lhe nos olhos e novamente pedia
para o sol não se pôr, como se isto fosse impedir que chegasse em casa.
Era Joana uma menina magra, de grandes olhos
negros que se destacavam no rosto ovalado e na pele clara. Apesar de já ter
doze anos, aparentava menos. Diariamente acordava muito cedo para fazer o café
para os irmãos e o padrasto, além de preparar algo para a mãe, que trabalhava à
noite. Depois, limpava a louça do café, a casa, atendia os irmãos - Aurélio, de
oito anos e Clarissa, de dois -, almoçava e ia a pé para a escola.
Caminhava por quase uma hora até avistar a
Vila: um amontoado de casas simples com chaminés fumegantes, a maioria de
madeira sem nenhuma pintura. Ficava a alguns quilômetros da cidade e, mesmo
fazendo parte desta, parece ter ficado esquecida no tempo. Nenhuma escola foi
construída, o que fazia com que as crianças precisassem se deslocar por
quilômetros até a mais próxima. Aqueles que quisessem estudar e que não eram
filhos de chacareiros mais abastados ou proprietários de carroças, tinham que
fazer todo o trajeto a pé, muitas vezes andando pelo barro na chuva, atolando
até as canelas. Ficava a Vila Formosa, que de formosa não tinha muito, na
encosta de uma coxilha, quatro quilômetros ao sul da cidade de Esperança do
Sul. Contam os mais velhos que ali vivia um fazendeiro muito rico, mas que
perdeu tudo o que tinha para o falecido Antônio Gonçalo, um poderoso negociante
e agiota. Como viviam ali algumas pessoas que trabalhavam na fazenda, “Seu
Gonça” não quis as mandar embora, desde que pagassem com o que produzissem o
direito de morar na terra. Antônio Gonçalo passou, assim como o tempo, e as
pessoas foram ficando, tendo filhos... Assim “A Vila” foi crescendo.
Descendo a coxilha, em direção de casa,
Joana já refeita, pois não gostava de ser vista chorando, era cumprimentada
pelas pessoas que encontrava pelo caminho. A primeira que avistou foi D. Marta.
Muito gorda, enfiada dentro de uma roupa visivelmente apertada, parecia ainda
mais estranha por dar um nó na parte da frente da camiseta que usava, deixando
toda a grande e branca barriga de fora; a senhora estava recolhendo as roupas
do varal e, ao avistar Joana, acenou e gritou:
-Boa
tarde, Jô. Como foi a aula?
-Boa tarde, Dona Marta! Foi boa. E a
senhora, como vai? E o seu João?
-Estou
bem, minha filha... e nem me fale naquele velho imprestável. Está lá dentro,
ouvindo rádio, é só isso que aquele sem-vergonha faz...
Joana ia se afastando, mas continuou ouvindo
a senhora seguir resmungando, mesmo depois de estar longe. Sua expressão ficou
séria, baixou a cabeça e apressou o passo quando viu um grupo de garotos mais
velhos, que brincava na rua. Um deles falou:
-Olha quem vem na passarela! E aí, magrela!
A mamãe vai trabalhar hoje à noite? Diz para ela ir na minha casa que eu
preciso de um remédio que só ela pode me dar...
Ao terminar de falar, o garoto e os outros
quatro que estavam junto começaram a rir e correr atrás da menina gritando:
“Corre, magrela! Corre!”. Joana começou a correr e os meninos continuaram com a
perseguição até que, ao chegar em frente a uma pequena casa cor de rosa, uma
mulher saiu de dentro com uma vassoura na mão, gritando ameaçadoramente:
-Saiam daqui seus sem-vergonhas! Não veem
que uma coisa destas não se faz? Onde já se viu tamanha maldade? – e baixando o
tom de voz – Entra um pouquinho, minha querida, estes meninos já devem estar
indo para casa.
Trêmula e muito ofegante, mas sem soltar uma
lágrima dos olhos, Jô obedece e, em silêncio, aceita a água que a mulher oferece.
-Que
coisa! Que meninos chatos! O que eles queriam contigo?
-Obrigado, tia Vanja. Eles sempre fazem
isso. Perguntam sobre minha mãe Fazem piadas sobre o trabalho dela... Ela é
enfermeira, trabalha à noite.
Era tia Vanja mulher de aproximadamente
quarenta anos, magra com o rosto cumprido. Os óculos de lentes minúsculas que
usava davam a impressão der ser mais velha do que realmente era, mas sua pele
era lisa e seus cabelos completamente pretos. Vivia sozinha em uma casa muito
limpa e que cheirava a pão recém saído do forno.
-Não
dê atenção para o que eles dizem, minha filha, o importante é que tu sejas
feliz dentro da tua casa, com tua mãe, teus irmãos e teu pai.
-Meu pai morreu... e eu não sou feliz dentro
da minha casa.- respondeu a menina, franzindo ainda mais a testa e baixando os
olhos, que agora fitavam o assoalho limpo e encerado da casa da Tia Vanja.
-Não diga uma coisa destas, menina! Onde já
se viu tamanho rancor? Tão nova e tão amarga.
A menina se fechou em um silêncio de pedra.
Agora a expressão nos olhos era de raiva, o que acabou por desconcertar a
mulher, que desviou o olhar e suspirou fundo.
-Tudo bem, não precisa dizer nada. Mas não
fica brava comigo, viu? Eu só quero ajudar. Olha, leva esse pão que eu fiz
agora à tarde, pede para a mamãe fazer um lanche para você, para seus irmãos,
para o papai...
Ao ouvir a palavra “papai”, Joana aperta o
embrulho com força, até sentir seus dedinhos finos penetrando a casca do pão
ainda quente.
Vanja ainda tenta uma última aproximação com
a menina, colocando uma das mãos em seu ombro, adoçando a voz e falando,
próximo ao seu ouvido:
-Olha,
Jô, eu te conheço desde que nasceste, tu pra mim és quase que uma filha... se
um dia acontecer qualquer coisa ruim, mas qualquer coisa mesmo, tu sabes que
podes contar comigo. Eu quero ser tua amiga, e quero que tu sintas o mesmo por
mim, tudo bem?
-Obrigada pelo pão, tia Vanja. – a pequena
menina abraçou o pacote e saiu rapidamente em direção à rua.
Já estava anoitecendo quando chegou em
frente à casa. Era uma casinha simples, de madeira, pintada de branco com
aberturas de uma cor que parecia marrom, ficava na parte alta de um barranco e
para chegar no portão de entrada tinha que subir uma escada improvisada,
moldada no próprio chão de terra avermelhada. Na parte da frente não tinha
porta, somente duas janelas, que estavam fechadas, na parte lateral uma única
janela aberta e, nos fundos, uma única porta ladeada por duas janelas.
Joana sabia que estava chegando em casa mais
tarde que o de costume e que provavelmente seria repreendida por isso. Mas o
que fazer quando uma pessoa só encontra um pouco de felicidade longe de casa?
Subiu a escada, abriu o portão de madeira e, antes mesmo de entrar em casa, já
ouviu um grito lá de dentro:
-
Ora, vejam! A princesa já chegou!
De dentro de casa saiu seu padrasto, com um
cinto de couro na mão e uma tão violenta expressão no rosto, que para Joana não
havia alternativa senão correr. Quando tentou dar meia volta e sair pelo portão
já era tarde demais. O homem a segurou pelos cabelos e lhe aplicou dois golpes
com a cinto nas pernas. Sentiu o líquido escorrer mornamente das entranhas e,
ao mesmo tempo que tentava se desvencilhar, era arrastada para dentro pelos
cabelos.
Seu
padrasto era um homem magro, tinha quarenta anos, mas aparentava ter muito
mais. Usava uma barba desleixada no rosto e fedia a cigarro e cachaça.
-Quer dizer que a princesa pensa que pode
chegar a hora que quiser, que não tem mais nada para fazer? Vamos acabar com
essa moleza hoje! Tu vais trabalhar para pagar o que come, chega de colégio,
chega de brinquedo. Dondoca aqui não tem mais lugar! Quando eu tinha doze anos
já pegava no pesado.
-Por
que é que não pega mais então? – a frase saiu engasgada, mais gemidos do que
palavras.
-E ainda acha que tem razão? Tu vais
aprender, sua cadelinha! – e cada palavra que falava saia com uma cusparada
fedendo a álcool e uma nova investida com a cinta fazia brotar vergões nas
pernas da menina.
A
princípio tentou segurar o choro, numa espécie de orgulho contido, mas sem
poder aguentar aquele bruto castigo entrou em um desespero profundo que se
traduzia em gritos desesperados:
-Não paizinho, por favor, não me bate mais,
eu prometo que não chego mais atrasada da escola. Vou fazer tudo que o senhor
mandar.
-Não me chama de paizinho! Tu nunca disseste
isso, sua cadelinha! Agora eu sou paizinho? Pois eu vou te ensinar o que é
paizinho... – nisso, começa e despir a menina, primeiro com calma nervosa, em
seguida, com fúria, tentando rasgar as parcas roupas que a menina vestia. Do
banheiro vinha agora o choro desesperado de duas crianças: sua irmãzinha e seu
irmão batiam freneticamente à porta, gritando por socorro.
-Eu devia ter te tirado da escola antes. Te
mandar para o mesmo lugar onde mandei a cadela da tua mãe ganhar a vida. Pode
ser que em um puteiro tu fiques feliz. Não é isso que tu andas dizendo para as
vizinhas? Que tu não és feliz em casa?
A imagem de tia Vanja vem agora a memória da
jovem: “...feliz dentro de casa, com tua mãe, teus irmãos e teu pai”. Não podia
estar confiando suas tristezas a ninguém.
Fazendo valer a maior força física e uma
brutalidade animalesca, o homem cresceu sobre a menina que inutilmente tentava
se soltar, gritando e cuspindo, tentando arranhar ou morder. Nisso, Joana
avista um vulto aparece na porta, que permanecia aberta. Era sua mãe.
- Deus que me perdoe pelo que vou fazer, mas
que minha filha nunca precise passar pelo que eu passo todos os dias para
sustentar um monstro dentro de casa. – com um revólver na mão, ela avança em
direção ao homem, que levanta e começa a recuar.
- Que isso, meu bem? Olha, não faz
bobagem... Vamos conversar, tá bem? Senta, te acalma. Nada é o que parece... Eu
só estava conversando com nossa filhinha. Né filhinha? – olhava para menina
que, horrorizada, de olhos arregalados, não conseguia articular palavra,
limitando-se a soluçar e tentar afastar-se, arrastando-se pelo chão em direção
ao banheiro, de onde vinha o choro dos irmãos.
- Eu sei muito bem o que parece. – com uma
frieza que surpreende tanto a filha quanto o padrasto, a mãe baixa o revolver
que até agora estava apontado para o rosto do homem e aponta em direção àquilo
que ele usaria como arma para ferir sua filha. – Não é isso que tu ias usar na
minha filhinha, cachorro? Tira a mão da frente, cafajeste, tu não vais precisar
mais. – e quando o homem abre a boca para protestar, ela atira.
Contorcido
de dor ele cai no chão e começa a gritar:
- Sua vadia, olha que fizeste!!! Volta pro
cabaré! O que fazes aqui essa hora???- uma baba visguenta escorre pelo canto da
boca um choro convulsivo sacode o padrasto de Joana.
- Tu pensas que eu não sabia, cachorro? Tu e
aquela bruxa da Vanja andam se encontrando? Tu pensas que ninguém ia me contar?
Eu sabia tudo... E hoje foi a última vez que tu tocaste na minha filha. Agora
tu vais aprender.
Joana de olhar fixo, não sabia o que fazer.
Soluços agora brotavam de seu peito e seus olhos não queriam parar de lacrimejar.
-
Não faz isso mamãe, por favor.
Como
se nada tivesse ouvido, a mãe atira uma, duas, três vezes contra o homem, que
deu um grito, seguido de um gemido e, por fim, o único som que se ouvia na casa
era do choro desesperado das crianças no banheiro.
-
Vai soltar teus irmãos, Joana. – falou secamente a mulher. A menina estranhou o
fato de nunca ter ouvido a mãe pronunciar seu nome por inteiro, pois sempre a
chamara de Jô ou filha.
Dirige-se ao banheiro e, quando gira a
chave, ouve outro estampido agora vindo da rua. Quando a porta se abre, um
menino corre por ela, quase a derrubando, a irmã mais nova estava no chão,
sangue manchava sua roupinha, hematomas marcavam seu rostinho. Como se
estivesse chumbada ao chão, fica olhando o bebê de dois anos em sua frente,
desfigurado pelo pranto. Só dá por si quando ouve o grito de seu irmão. –
Não!!! Papai, acorda, papai!!! – Ela sabia o que tinha acontecido, mas um
torpor tomava conta de seu corpo, não tinha vontade de se mexer. Por fim, acaba
pegando a irmã no colo e se dirige em direção aos gritos de seu irmão. Ao vê-lo
sobre o corpo do pai, a chorar, percebe que sua mãe não está mais ali. Vai,
então, em direção à rua sabendo o que ia ver, mas não querendo que aquele
momento chegasse nunca. Por fim, avista o corpo de sua mãe caído junto à porta,
os olhos abertos, vidrados olhando para o nada, na mão, o revólver, ao lado de
sua cabeça uma poça de sangue barrento aumentava de tamanho. Suas pernas
amoleceram, seus olhos não viram mais nada e, ao mesmo tempo que sentia aquela
sensação de vazio no corpo, sentia latejar sua cabeça e, por fim, caiu de
joelhos, terminando estendida por completo no chão. Sua irmãzinha caiu junto,
já sem forças para chorar, somente soltava gemidos tristes. A última coisa que
Joana lembra ter visto, foi D. Marta do lado de fora da cerca que, de olhos
arregalados, olhava para a cena de boca aberta – Meus Deus do céu, o que é
isso???!!!
- Vai soltar teus irmãos, Joana. – falou secamente a mulher. A menina estranhou o fato de nunca ter ouvido a mãe pronunciar seu nome por inteiro, pois sempre a chamara de Jô ou filha.
ResponderExcluirDirige -se ao banheiro, vira a chave e quando abre a porta, percebe sua irmãzinha desfalecida enquanto seu irmão corre em direção ao corpo do pai, já sem vida.
Ela acompanha a cena e percebe que já não existe aquele olhar amargurado no rosto da sua mãe É sim um misto entre horror e vitória, satisfação e medo.
Pegue suas coisas, rápido! diz a mãe para Joana que corre a juntar seus poucos e esfarrapados pertences.
Em poucos minutos, mãe e filhos tomam a estrada rumo a qualquer lugar, deixando para trás uma casa com cheiro de álcool e morte e levando na mala poucos pertences materiais mas repleta de amor e esperança de dias melhores.
Muito obrigado pela participação e colaboração, Patrícia!!! O final alternativo que enviaste é lindo e forte!!! Abração!!!
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