CONTO 010 - A história de Joana

Em 2013 havia escrito um conto com uma proposta diferente: uma narrativa dramática, sem necessariamente um "final feliz", como normalmente há de se esperar. Queria um texto que representasse o sofrimento, que fizesse o leitor imergir em sentimentos complexos, tão presentes em nossas vidas, mas que muitas vezes são difíceis de colocar em textos, quase como tabus. Queria justamente que gerasse uma reflexão acerca de quantas vezes escondemos a dor, ou a maquiamos com reviravoltas redentoras. Apesar de ter sido escrito em 2013, o texto permanecia inédito. Talvez me tivesse faltado coragem de publicá-lo. Até agora. 


A HISTÓRIA DE JOANA

Joana sempre se comovia ao ver o pôr-do-sol. Era como se assistisse todos os dias a morte de uma pessoa próxima, sabendo que voltaria a vê-la no dia seguinte. Ultimamente, quando voltava da escola, tinha a oportunidade de assistir a cena por completo, o horário e a distância que percorria a pé até sua casa lhe davam esta oportunidade. E assim, andando em silêncio, pensando nas coisas que encontraria quando chegasse em casa, encontrava um conforto que quase a fazia ficar sentada, esperando que o sol não se escondesse, que sua imagem ficasse parada, imune ao passar do tempo. No entanto, logo a realidade caía sobre si de uma forma avassaladora... a mãe quieta, sempre com aquela expressão de tristeza nos olhos, o irmão de dez anos que a tratava com uma estranha, a irmãzinha chorando no berço e o padrasto, a olhá-la daquele jeito estranho, deixando-a desconcertada com aquelas coisas estranhas que falava. Por que será que cada vez que ele lhe dirigia a palavra sua mãe parecia entrar em pânico? Várias vezes encontrou sua mãe chorando depois destas conversas. E por que será que a mãe parecia mudar completamente de comportamento nestas oportunidades? Será que ela, Joana, estiva fazendo alguma coisa de errada ou provocando aquelas conversas? Não sabia as respostas. E ao pensar nestas coisas, lágrimas brotavam-lhe nos olhos e novamente pedia para o sol não se pôr, como se isto fosse impedir que chegasse em casa.

Era Joana uma menina magra, de grandes olhos negros que se destacavam no rosto ovalado e na pele clara. Apesar de já ter doze anos, aparentava menos. Diariamente acordava muito cedo para fazer o café para os irmãos e o padrasto, além de preparar algo para a mãe, que trabalhava à noite. Depois, limpava a louça do café, a casa, atendia os irmãos - Aurélio, de oito anos e Clarissa, de dois -, almoçava e ia a pé para a escola.

Caminhava por quase uma hora até avistar a Vila: um amontoado de casas simples com chaminés fumegantes, a maioria de madeira sem nenhuma pintura. Ficava a alguns quilômetros da cidade e, mesmo fazendo parte desta, parece ter ficado esquecida no tempo. Nenhuma escola foi construída, o que fazia com que as crianças precisassem se deslocar por quilômetros até a mais próxima. Aqueles que quisessem estudar e que não eram filhos de chacareiros mais abastados ou proprietários de carroças, tinham que fazer todo o trajeto a pé, muitas vezes andando pelo barro na chuva, atolando até as canelas. Ficava a Vila Formosa, que de formosa não tinha muito, na encosta de uma coxilha, quatro quilômetros ao sul da cidade de Esperança do Sul. Contam os mais velhos que ali vivia um fazendeiro muito rico, mas que perdeu tudo o que tinha para o falecido Antônio Gonçalo, um poderoso negociante e agiota. Como viviam ali algumas pessoas que trabalhavam na fazenda, “Seu Gonça” não quis as mandar embora, desde que pagassem com o que produzissem o direito de morar na terra. Antônio Gonçalo passou, assim como o tempo, e as pessoas foram ficando, tendo filhos... Assim “A Vila” foi crescendo.

Descendo a coxilha, em direção de casa, Joana já refeita, pois não gostava de ser vista chorando, era cumprimentada pelas pessoas que encontrava pelo caminho. A primeira que avistou foi D. Marta. Muito gorda, enfiada dentro de uma roupa visivelmente apertada, parecia ainda mais estranha por dar um nó na parte da frente da camiseta que usava, deixando toda a grande e branca barriga de fora; a senhora estava recolhendo as roupas do varal e, ao avistar Joana, acenou e gritou:

-Boa tarde, Jô. Como foi a aula?

-Boa tarde, Dona Marta! Foi boa. E a senhora, como vai? E o seu João?

-Estou bem, minha filha... e nem me fale naquele velho imprestável. Está lá dentro, ouvindo rádio, é só isso que aquele sem-vergonha faz...

Joana ia se afastando, mas continuou ouvindo a senhora seguir resmungando, mesmo depois de estar longe. Sua expressão ficou séria, baixou a cabeça e apressou o passo quando viu um grupo de garotos mais velhos, que brincava na rua. Um deles falou:

-Olha quem vem na passarela! E aí, magrela! A mamãe vai trabalhar hoje à noite? Diz para ela ir na minha casa que eu preciso de um remédio que só ela pode me dar...

Ao terminar de falar, o garoto e os outros quatro que estavam junto começaram a rir e correr atrás da menina gritando: “Corre, magrela! Corre!”. Joana começou a correr e os meninos continuaram com a perseguição até que, ao chegar em frente a uma pequena casa cor de rosa, uma mulher saiu de dentro com uma vassoura na mão, gritando ameaçadoramente:

-Saiam daqui seus sem-vergonhas! Não veem que uma coisa destas não se faz? Onde já se viu tamanha maldade? – e baixando o tom de voz – Entra um pouquinho, minha querida, estes meninos já devem estar indo para casa.

Trêmula e muito ofegante, mas sem soltar uma lágrima dos olhos, Jô obedece e, em silêncio, aceita a água que a mulher oferece.

-Que coisa! Que meninos chatos! O que eles queriam contigo?

-Obrigado, tia Vanja. Eles sempre fazem isso. Perguntam sobre minha mãe Fazem piadas sobre o trabalho dela... Ela é enfermeira, trabalha à noite.

Era tia Vanja mulher de aproximadamente quarenta anos, magra com o rosto cumprido. Os óculos de lentes minúsculas que usava davam a impressão der ser mais velha do que realmente era, mas sua pele era lisa e seus cabelos completamente pretos. Vivia sozinha em uma casa muito limpa e que cheirava a pão recém saído do forno.

-Não dê atenção para o que eles dizem, minha filha, o importante é que tu sejas feliz dentro da tua casa, com tua mãe, teus irmãos e teu pai.

-Meu pai morreu... e eu não sou feliz dentro da minha casa.- respondeu a menina, franzindo ainda mais a testa e baixando os olhos, que agora fitavam o assoalho limpo e encerado da casa da Tia Vanja.

-Não diga uma coisa destas, menina! Onde já se viu tamanho rancor? Tão nova e tão amarga.

A menina se fechou em um silêncio de pedra. Agora a expressão nos olhos era de raiva, o que acabou por desconcertar a mulher, que desviou o olhar e suspirou fundo.

-Tudo bem, não precisa dizer nada. Mas não fica brava comigo, viu? Eu só quero ajudar. Olha, leva esse pão que eu fiz agora à tarde, pede para a mamãe fazer um lanche para você, para seus irmãos, para o papai...

Ao ouvir a palavra “papai”, Joana aperta o embrulho com força, até sentir seus dedinhos finos penetrando a casca do pão ainda quente.

Vanja ainda tenta uma última aproximação com a menina, colocando uma das mãos em seu ombro, adoçando a voz e falando, próximo ao seu ouvido:

-Olha, Jô, eu te conheço desde que nasceste, tu pra mim és quase que uma filha... se um dia acontecer qualquer coisa ruim, mas qualquer coisa mesmo, tu sabes que podes contar comigo. Eu quero ser tua amiga, e quero que tu sintas o mesmo por mim, tudo bem?

-Obrigada pelo pão, tia Vanja. – a pequena menina abraçou o pacote e saiu rapidamente em direção à rua.

Já estava anoitecendo quando chegou em frente à casa. Era uma casinha simples, de madeira, pintada de branco com aberturas de uma cor que parecia marrom, ficava na parte alta de um barranco e para chegar no portão de entrada tinha que subir uma escada improvisada, moldada no próprio chão de terra avermelhada. Na parte da frente não tinha porta, somente duas janelas, que estavam fechadas, na parte lateral uma única janela aberta e, nos fundos, uma única porta ladeada por duas janelas.

Joana sabia que estava chegando em casa mais tarde que o de costume e que provavelmente seria repreendida por isso. Mas o que fazer quando uma pessoa só encontra um pouco de felicidade longe de casa? Subiu a escada, abriu o portão de madeira e, antes mesmo de entrar em casa, já ouviu um grito lá de dentro:

- Ora, vejam! A princesa já chegou!

De dentro de casa saiu seu padrasto, com um cinto de couro na mão e uma tão violenta expressão no rosto, que para Joana não havia alternativa senão correr. Quando tentou dar meia volta e sair pelo portão já era tarde demais. O homem a segurou pelos cabelos e lhe aplicou dois golpes com a cinto nas pernas. Sentiu o líquido escorrer mornamente das entranhas e, ao mesmo tempo que tentava se desvencilhar, era arrastada para dentro pelos cabelos.

Seu padrasto era um homem magro, tinha quarenta anos, mas aparentava ter muito mais. Usava uma barba desleixada no rosto e fedia a cigarro e cachaça.

-Quer dizer que a princesa pensa que pode chegar a hora que quiser, que não tem mais nada para fazer? Vamos acabar com essa moleza hoje! Tu vais trabalhar para pagar o que come, chega de colégio, chega de brinquedo. Dondoca aqui não tem mais lugar! Quando eu tinha doze anos já pegava no pesado.

-Por que é que não pega mais então? – a frase saiu engasgada, mais gemidos do que palavras.

-E ainda acha que tem razão? Tu vais aprender, sua cadelinha! – e cada palavra que falava saia com uma cusparada fedendo a álcool e uma nova investida com a cinta fazia brotar vergões nas pernas da menina.

A princípio tentou segurar o choro, numa espécie de orgulho contido, mas sem poder aguentar aquele bruto castigo entrou em um desespero profundo que se traduzia em gritos desesperados:

-Não paizinho, por favor, não me bate mais, eu prometo que não chego mais atrasada da escola. Vou fazer tudo que o senhor mandar.

-Não me chama de paizinho! Tu nunca disseste isso, sua cadelinha! Agora eu sou paizinho? Pois eu vou te ensinar o que é paizinho... – nisso, começa e despir a menina, primeiro com calma nervosa, em seguida, com fúria, tentando rasgar as parcas roupas que a menina vestia. Do banheiro vinha agora o choro desesperado de duas crianças: sua irmãzinha e seu irmão batiam freneticamente à porta, gritando por socorro.

-Eu devia ter te tirado da escola antes. Te mandar para o mesmo lugar onde mandei a cadela da tua mãe ganhar a vida. Pode ser que em um puteiro tu fiques feliz. Não é isso que tu andas dizendo para as vizinhas? Que tu não és feliz em casa?

A imagem de tia Vanja vem agora a memória da jovem: “...feliz dentro de casa, com tua mãe, teus irmãos e teu pai”. Não podia estar confiando suas tristezas a ninguém.

Fazendo valer a maior força física e uma brutalidade animalesca, o homem cresceu sobre a menina que inutilmente tentava se soltar, gritando e cuspindo, tentando arranhar ou morder. Nisso, Joana avista um vulto aparece na porta, que permanecia aberta. Era sua mãe.

- Deus que me perdoe pelo que vou fazer, mas que minha filha nunca precise passar pelo que eu passo todos os dias para sustentar um monstro dentro de casa. – com um revólver na mão, ela avança em direção ao homem, que levanta e começa a recuar.

- Que isso, meu bem? Olha, não faz bobagem... Vamos conversar, tá bem? Senta, te acalma. Nada é o que parece... Eu só estava conversando com nossa filhinha. Né filhinha? – olhava para menina que, horrorizada, de olhos arregalados, não conseguia articular palavra, limitando-se a soluçar e tentar afastar-se, arrastando-se pelo chão em direção ao banheiro, de onde vinha o choro dos irmãos.

- Eu sei muito bem o que parece. – com uma frieza que surpreende tanto a filha quanto o padrasto, a mãe baixa o revolver que até agora estava apontado para o rosto do homem e aponta em direção àquilo que ele usaria como arma para ferir sua filha. – Não é isso que tu ias usar na minha filhinha, cachorro? Tira a mão da frente, cafajeste, tu não vais precisar mais. – e quando o homem abre a boca para protestar, ela atira.

Contorcido de dor ele cai no chão e começa a gritar:

- Sua vadia, olha que fizeste!!! Volta pro cabaré! O que fazes aqui essa hora???- uma baba visguenta escorre pelo canto da boca um choro convulsivo sacode o padrasto de Joana.

- Tu pensas que eu não sabia, cachorro? Tu e aquela bruxa da Vanja andam se encontrando? Tu pensas que ninguém ia me contar? Eu sabia tudo... E hoje foi a última vez que tu tocaste na minha filha. Agora tu vais aprender.

Joana de olhar fixo, não sabia o que fazer. Soluços agora brotavam de seu peito e seus olhos não queriam parar de lacrimejar.

- Não faz isso mamãe, por favor.

Como se nada tivesse ouvido, a mãe atira uma, duas, três vezes contra o homem, que deu um grito, seguido de um gemido e, por fim, o único som que se ouvia na casa era do choro desesperado das crianças no banheiro.

- Vai soltar teus irmãos, Joana. – falou secamente a mulher. A menina estranhou o fato de nunca ter ouvido a mãe pronunciar seu nome por inteiro, pois sempre a chamara de Jô ou filha.

Dirige-se ao banheiro e, quando gira a chave, ouve outro estampido agora vindo da rua. Quando a porta se abre, um menino corre por ela, quase a derrubando, a irmã mais nova estava no chão, sangue manchava sua roupinha, hematomas marcavam seu rostinho. Como se estivesse chumbada ao chão, fica olhando o bebê de dois anos em sua frente, desfigurado pelo pranto. Só dá por si quando ouve o grito de seu irmão. – Não!!! Papai, acorda, papai!!! – Ela sabia o que tinha acontecido, mas um torpor tomava conta de seu corpo, não tinha vontade de se mexer. Por fim, acaba pegando a irmã no colo e se dirige em direção aos gritos de seu irmão. Ao vê-lo sobre o corpo do pai, a chorar, percebe que sua mãe não está mais ali. Vai, então, em direção à rua sabendo o que ia ver, mas não querendo que aquele momento chegasse nunca. Por fim, avista o corpo de sua mãe caído junto à porta, os olhos abertos, vidrados olhando para o nada, na mão, o revólver, ao lado de sua cabeça uma poça de sangue barrento aumentava de tamanho. Suas pernas amoleceram, seus olhos não viram mais nada e, ao mesmo tempo que sentia aquela sensação de vazio no corpo, sentia latejar sua cabeça e, por fim, caiu de joelhos, terminando estendida por completo no chão. Sua irmãzinha caiu junto, já sem forças para chorar, somente soltava gemidos tristes. A última coisa que Joana lembra ter visto, foi D. Marta do lado de fora da cerca que, de olhos arregalados, olhava para a cena de boca aberta – Meus Deus do céu, o que é isso???!!!





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Comentários

  1. - Vai soltar teus irmãos, Joana. – falou secamente a mulher. A menina estranhou o fato de nunca ter ouvido a mãe pronunciar seu nome por inteiro, pois sempre a chamara de Jô ou filha.

    Dirige -se ao banheiro, vira a chave e quando abre a porta, percebe sua irmãzinha desfalecida enquanto seu irmão corre em direção ao corpo do pai, já sem vida.
    Ela acompanha a cena e percebe que já não existe aquele olhar amargurado no rosto da sua mãe É sim um misto entre horror e vitória, satisfação e medo.
    Pegue suas coisas, rápido! diz a mãe para Joana que corre a juntar seus poucos e esfarrapados pertences.
    Em poucos minutos, mãe e filhos tomam a estrada rumo a qualquer lugar, deixando para trás uma casa com cheiro de álcool e morte e levando na mala poucos pertences materiais mas repleta de amor e esperança de dias melhores.

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    1. Muito obrigado pela participação e colaboração, Patrícia!!! O final alternativo que enviaste é lindo e forte!!! Abração!!!

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