CONTO 001 - Um piá

O interior do Rio Grande do Sul, estado mais ao sul do Brasil, é formado predominantemente por grandes áreas rurais que circundam pequenos centros urbanos. Este verdadeiro mar verde é dividido em propriedades agropastoris, algumas pequenas, muitas cujas dimensões perdem-se de vista. Em todas elas, sem exceção, há pelo menos um piá. Forma como a região chama genericamente qualquer menino ou guri. Esta história é sobre um destes piás.
O pequeno Januário, magrinho e mirrado, da estatura que cabia em seus dez anos de idade, vivia a correr na volta “das casas” ajudando nas lidas diárias. Alimentava as galinhas, buscava lenha pro fogão. Voava em seu petiço quando um recado urgente precisava levar.
Nos raros momentos que se permitia brincar, principalmente à tarde, na hora da sesta dos adultos, virava “grande” também. Tropeava e parava rodeios inteiros com gado feito de pequenos ossinhos. Laçava, marcava, castrava e curava. Também domava cavalos imaginários – as varas mais altas da mangueira viraram tropilhas inteiras, todas amansadas a laço por seu rebenque de meia.
As rotinas cotidianas na campanha se iniciam muito cedo e um menino já tem muitas atribuições e responsabilidades. Buscar as vacas de leite para embretar na mangueira era o primeiro ofício do dia do pequeno Januário. Cedo mesmo, porque enquanto a peonada ia acordando, para tomar o primeiro mate, alguém da cozinha já ia de balde em punho para iniciar a ordenha.
Quando o guri entrava no galpão a roda de mate já estava formada. Olhos e ouvidos atentos. O capataz ia falando das coisas que deveriam ser feitas naquele dia. Os olhos do piá fixos na cuia, que passava de mão em mão. Quando chegava a sua vez, a cuia passava ao largo. A peonada olhava para ele de mãozinhas estendidas. Davam risadas amigas, passavam a mão na sua cabeça e diziam que quando ele fosse "mais grande" tomaria mate como os gaúchos. Aquilo repetia todos os dias.

Depois que a peonada encilhava seus cavalos e saía para o campo, ele pegava a cuia com a erva lavada, a água já morna e servia um mate escondido. Depois do café, pegava o petiço e se tocava a trote para o colégio rural. Em seu pequeno coração a esperança de que o próximo dia seria diferente. Que suas mãos pequeninas ganhariam a cuia, e aqueles velhos gaúchos, que admirava e nos quais se espelhava, o veriam como um igual. Um gaúcho.
Mas por que tinha que esperar tanto?
Ele levantava tão cedo quanto os peões! Lidava na mangueira com coragem e alegria! Dava comida pros bichos, ajudava no banho das ovelhas, descascava "pêsco" para fazer passa...
Então por que não podia matear?
Em uma noite fria de julho o pequeno Januário não conseguiu dormir. Deitado em sua cama com os olhos aberto, repetia as perguntas e não achava respostas. Ele sabia que mesmo não sendo “grande”, era tão gaúcho quanto os demais.
Madrugada alta! O frio do inverno parecia que encarangava até a chama da lamparina de querosene.
Januário levanta, se enrola num poncho velho e, passos miúdos, vai direito a invernada onde as vacas leiteiras pernoitam. Elas se assustam, acostumadas a serem tocadas mais tarde. Contudo, logo baixam a cabeça e se vão rumo à mangueira da ordenha. Os pés do piá, quebrando a geada, pisavam firmes como se quisessem esquecer o frio. Esquecer o medo. Medo de ser pego "fazendo arte".
Depois, pé-ante-pé, entra no galpão. Sorri ao ouvir os roncos da peonada que dorme no alojamento ao lado.
Onde até pouco tempo havia um grande fogo de chão, agora apenas cinzas e um pai-de-fogo sem qualquer sinal de calor. Nervosamente empilha palha de milho e gravetos. Sabia como principiar um fogo, pois já fizera isso várias vezes em sonho.
Um pau de lenha... outro pau de lenha...
Onde estão os fósforos? Dentro de uma gamela quebrada, junto da palha e do fumo em corda.
Mãozinhas tremendo, dedos arroxeados de frio.
“Acende palha! O frio não deixa... agora vai... ACENDEU!”
Na tina de barro enche a cambona com água.
“Água gelada, parece que corta!”
O fogo começa a aquecer o galpão que se ilumina em um lusco-fusco de luzes e sombras dançarinas. O coração do piá se aquece também. Luzes se acendem em seus olhos miúdos.
A cuia na mão, a erva tombando, a água esperta.
“Incha logo erva!” Até a água sumir, parece que passaram horas.
“Agora só falta a bomba, tapando o bocal.”
“Pronto!”
A água na cambona começa a chiar e a mãozinha pequena, no cabo de arame, nem sente que queima!
Enche bem a cuia, igualzinho os peões. Uma lagoa verde e espumante evoca orgulhos e sonhos secretos. Januário suspira profundamente. Não consegue mais segurar o que cresce em seu peito e chora mansinho.
Lá fora a cantoria dos galos anunciam mais um dia de inverno no sul. Dos olhos do piá lágrimas quentes rolam sem embaraço. Quente também é o mate que ele sorve com gosto. O salgado da lágrima e o amargo do mate nutrindo esperanças.
A doce revelação: “EU JÁ SOU UM GAÚCHO!” E aquele é o melhor mate que as mãos de um gaúcho já fizeram no mundo!
Quando a peonada da estância começa a se movimentar - caras amassadas em direção ao galpão - encontram o piá mateando solito, em silêncio. Os olhos molhados miravam o fogo.
Nenhum disse nada. Não ousaram falar.
Nenhuma risada ou mãos calejadas afagando os cabelos revoltos.
Sentaram formando uma grande roda e aceitaram o mate que o piá alcançou. As mãos pequenas e, agora, firmes do pequeno homenzinho passavam a cuia. Entre aqueles peões rudes, de caras judiadas e sérias, uma certeza:
Ali não mais um piá, mas um GAÚCHO afinal..












GLOSSÁRIO (na ordem que os termos aparecem no texto):
- das casas: maneira que o morador da zona rural se refere à parte construída da propriedade, à sede.
- chasque: recado
- sesta: cochilo (à tarde, depois do almoço)
- parar rodeio: reunir o gado
- gado de osso: uma das brincadeiras da campanha era confeccionar, com ossos, tropas de gado, pois não havia brinquedos feitos em fábricas
- mangueira/brete: cercado de madeira onde os peões prendem o gado para realização de tarefas
- rebenque: espécie de chicote
- mate: chimarrão
- erva lavada: mate com erva já sem gosto
- petiço: cavalo pequeno
- pêsco: pêssego (a passa de pêssego é uma iguaria campeira saborosa!)
- invernada: espaço de campo delimitado por cercamento, onde os animais ficam confinados
- fazendo arte: fazendo malcriação, aprontando
- urutau: ave de hábitos noturnos e canto triste
- pai-de-fogo: lenha maior, onde as menores são escoradas para dar sustentação ao fogo e mante-lo acesso por mais tempo
- gamela: espécie de tigela feita de madeira.
- fumo em corda: tabaco para confecção de cigarro de palha, palheiro.
- tina: recipiente para armazenar água
- cambona: espécie de chaleira rústica, que pode ser feita com uma lata qualquer
- cuia: cabaça, porongo onde é feito o chimarrão
- bomba: espécie de canudo de metal para sorver o chimarrão





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Comentários

  1. Que história gostosa,
    que me levou a minha infancia.

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  2. Leandro enquanto lia, meus olhos se encheram de lágrima e não pude conter o sorriso. Muito lindo o texto, me arrepiei dos pés a cabeça. Parabéns pela sensibilidade e por nos proporcionar uma leitura tão gratificante.

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    1. Oi, Débora! Muito obrigado pelo carinho... Acho que esse texto conta um pouco da vida de todos nós, né?
      Abração!

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  3. Bom dia. Lindo texto. Remeteu a minha infância. Vou mandar para minhas filhas que não nasceram aqui. Mas são gaúchas de coração e tradição. Parabéns.

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    1. Muito obrigado!!! Depois me diz o que tuas meninas acharam! Abração!!!

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