OPINIÃO 094 - Afiando facas

Uma das coisas interessantes que aprendi com meu avô paterno, e que até hoje continua fazendo parte de minha vida, é sua técnica para afiar facas.

Quando criança, observava como ele fazia parecer legal aquele movimento sem graça de esfregar uma faca em uma pedra. Quando jovem, morei por um tempo com meu avô e, em vez de ficar apenas observando, fui me interessando em aprender, perguntando e copiando aquela dinâmica de esfregar a faca em um tipo de pedra, depois em outra, ir molhando e passando o fio nos dedos para ver se estava cortando. Algumas vezes me cortava, em outras chegava a ficar com dor nos braços de tanto friccionar uma faca sem conseguir fazer com que ela cortasse nada.

Parecia simples, mas na verdade havia muita ciência na maneira com que ele posicionava as facas nas pedras para amolá-las. Precisava inclinar em um ângulo específico de cada lado da lâmina, primeiramente quase rente à pedra para afiná-la e, finalmente, aumentando a inclinação para fazer o esperado fio. Quase sempre utilizava dois tipos de pedras: uma mais abrasiva para fazer o desgaste bruto, e outra mais lisa, para dar o acabamento. Vez por outra molhava as pedras para limpar fragmentos que iam se soltando e “lubrificar” a pedra. Testava nos dedos mesmo, para ver se estava “pegando o fio” ou se precisava afinar mais um pouco.


Quando mais velho, apenas observava e copiava seus movimentos. No entanto, quando comecei a questionar e procurar entender as coisas ao meu redor, notei que vô Cungo finalizava a afiação das facas sempre de uma maneira curiosa. Após fazer todo o procedimento de afinar e afiar, ele finalizava passando a faca em um pedaço de madeira. Na mesma posição e direção que passava nas pedras, apenas com mais cuidado e calma. Ele chamava esta parte do processo de “sentar o fio”.

Ora bolas! Isso só pode ser algum tipo de superstição, mania ou preciosismo do meu avô. – Pensava um jovem e ingênuo Leandro. Calculava, em minha cabeça de moderno e racional, que não havia lógica alguma em esfregar a faca em uma madeira, depois de fazer o mesmo durante tanto tempo em pedras muito abrasivas. De que maneira passar a lâmina em um pedaço de madeira, menos resistente que o aço ou a pedra, faria alguma diferença? Perguntei algumas vezes para meu avô para que servia e a única resposta que recebia era que aquilo ajudava a sentar o fio.

Só quando a necessidade e a falta de meu avô, que já havia partido, me obrigaram a amolar as próprias facas, fui entender sua técnica e a diferença que o pedacinho de madeira fazia na finalização da afiação.

Quando a faca já estava “afiada”, ou seja, com o fio pronto, restavam na parte mais fina da lâmina uma série de rebarbas, pequenos pedaços de metal resultantes do degaste, quase invisíveis a olho nu, mas que deixavam a parte cortante áspera. Ao friccionar longitudinalmente em uma madeira, estes fragmentos minúsculos iam se alinhando à folha da faca, ou mesmo desaparecendo, deixando o instrumento com um corte mais preciso e uma afiação muito mais duradoura. Desta forma preservava o aço e deixava “o fio mais bonito”, como dizia meu avô. Lembro como se fosse hoje ele testando o fio da faca, passando a parte cortante levemente pelo braço, para ver os pelinhos sendo cortados, como por uma lâmina de barbear. O sorrisão aberto e franco, de alguém que conseguia sentir orgulho em conseguir fazer algo simples, mas tão bem feito. As vaidades do velho Cungo eram muito curiosas.

Hoje percebo que algumas pessoas são como pedras de afiar. Podem ser mais ou menos abrasivas. Usam o atrito e o desgaste para ir desbastando os outros até que, finalmente, fiquem de acordo com aquilo que acreditam ser “afiados”. Atrito esse que muitas vezes é um método doloroso, traumático. Tira os pedaços, deixa rebarbas e pesares.

Outras pessoas são como um simples pedaço de madeira. Aparentemente sem força para desbastar ou atritar. Débil demais para moldar o aço, remover arestas, apurar os hábitos. É aí que nos enganamos! A melhor parte do fio é feita justamente por quem consegue realinhar nossos fragmentos, posicioná-los na direção correta ou simplesmente tirá-los de nós, deixando apenas aquilo que nos é necessário para cumprirmos nosso papel. Sem a necessidade do trauma. Sem subtrair nossa essência ou desgastar nosso aço.

Tenho me questionado quantas vezes tenho sido pedra e ou madeira, nesta lida contínua de aperfeiçoar-me.







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Comentários

  1. Momento saudosismo: Vivenciei esta cena nos anos 50 no interior de Nova Prata. Com uma diferença, ao invés de usar um pedaço de madeira, usavam a tábua da mesa de rua hehe.
    PS: Quando vais parir o primogênito literário?

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    1. Pois é... Meu avô usava uma madeirinha, que na verdade era uma ripa de cerno de eucalipto. Eu uso o esteio do meu galpão..
      Sobre o primogênito literário, está nas mãos da editora, para análise da equipe editorial. Depois, vou precisar correr atrás de um patrocínio para viabilizar... Estou aguardando, ansioso!!!!

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