Heteróclito,
O Estrambótico, era o monarca que governava Ádvena, um pequeno país localizado
ao sul do Império Estúrdio e, eventualmente, à oeste da Península Sbórnica. Era
assumidamente um rei velho e aborrecido, apesar de não ter mais do que vinte e
poucos anos. Costumava andar meio encurvado, justamente para aparentar mais
idade do que realmente tinha. Sempre cercado de serviçais e bajoujos, Heteróclito
colecionava bengalas imaginárias, nas quais se apoiava convenientemente, e
sacos de papel, que usava para guardar os pedidos dos súditos, que eram
queimados antes mesmo de serem lidos.
Entre
os asseclas que o acompanhavam havia um que se destacava por se autoproclamar
seu braço direito. Era Espúrio Homúnculo um homem tão baixo que muitas vezes
para se fazer ouvir pelo imperador, precisava puxar o saco de papel que ele
carregava. Enquanto puxava o saco do rei, Espúrio se orgulhava em repetir que
era o Conselheiro Real, mesmo sabendo que Heteróclito jamais pedia conselhos.
A casa
do imperador Heteróclito era o Palácio de Quimera, uma nababesca e sólida
construção feita de rochas ludíbrias, no alto de uma colina, rodeada muralhas e
soldados frívolos. Por se tratar de um monarca vaidoso, Heteróclito, O
Estrambótico, decorava o palácio com estátuas. Todas com representações suas. Pagava
verdadeiras fortunas a renomados artistas do reino para que esculpissem efígies
de todo tipo. Havia o imperador lendo, cavalgando, empunhando espadas e, até
mesmo, sorrindo. E o imperador nunca sorria.
Quando
não havia mais lugar para colocar estátuas no palácio, o soberano de Ádvena,
que se achava um homem extremamente sofisticado, decidiu que estava na hora de
evoluir culturalmente e promoveu a maior competição que seu reino já
presenciara. Ofereceu seu peso em ouro ao pintor que fizesse o quadro mais fiel
à sua nobre pessoa, destacando todas as suas qualidades como monarca. Ao ouvir
de sua majestade tal proclamação, Espúrio aplaudia e dava pequenos saltos,
exaltando a inteligência de seu rei, que sequer notava sua presença.
Logo
a notícia se espalhou por toda Ádvena. Artistas começaram a surgir de todos os
cantos, armados com suas telas, pinceis e tintas. Como Heteróclito não tinha paciência
alguma para posar, deixava que os artistas o acompanhassem para onde quer que
fosse. Perseguiam o imperador por todos os lados, tentando captar seu melhor
ângulo, sua melhor pose. Havia pinturas com o rei vestido, nu, comendo, tomando
banho, na privada.
Espúrio
Homúnculo fiscalizava os trabalhos dos artistas atentamente, como um verdadeiro
árbitro. Desclassificava da competição aqueles que considerava ruins. Mandava
decapitar os autores dos que considerava ofensivos. Adulava os artistas que
atendiam suas expectativas.
Chegado
o dia da apresentação das obras, houve uma grande festa. Bandeirolas coloridas
balançavam embaladas pelo vento em torno da bela praça central, onde havia sido
construído um grande palco para exibição dos quadros finalistas. Espúrio,
nervoso, andava de um lado para outro distribuindo ordens e grunhidos. Dava
pulinhos e cheirava as pontas dos dedos. Toda a população compareceu para
assistir à escolha do quadro que melhor representaria seu monarca.
Havia
cinco quadros finalistas. Colocados lado a lado, cobertos por tecidos,
aguardavam o momento certo para serem descerrados. Todos esperavam a chegada do
imperador que, pessoalmente, faria a escolha daquele que melhor o representaria.
De repente, o burburinho de população é silenciado pelo som de uma dezena de trombetas
que, dramaticamente, anunciavam o aparecimento do nobre líder de Ádvena.
Heteróclito,
O Estrambótico, trajava vestes típicas da linhagem dos nobres adveneiros.
Muitos tecidos adiáforos compunham uma silhueta disforme, que faziam do jovem
velho monarca uma figura ainda mais enigmática no que diz respeito à sua idade
ou sua saúde. Encurvado sobre sua mais bela bengala imaginária, sem esboçar o
menor sorriso, subiu ao palco para descortinar as obras e selecionar aquela que
o imortalizaria pela eternidade. Com um gesto grave e largo, ordenou que
Espúrio descobrisse as obras.
Um
silêncio quase palpável tomou conta da população de Ádvena. Boquiabertos, os
cidadãos olhavam para o palco, ora aos quadros, ora ao imperador. Era possível
ouvir o zumbido das moscas voando sobre as cabeças sujas das pessoas estáticas,
apáticas, axiomáticas. Um misto de surpresa e estranhamento estampado no rosto
de todos que, atônitos, tentavam decifrar as imagens que se revelavam a sua
frente.
Quadro
a quadro, Heteróclito era exposto de uma forma jamais vista pelos cidadãos. Apenas
através do rosto das figuras retratadas era possível definir que se tratava do
imperador. Nas telas, a imagem de alguém jovem, saudável e bonito.
Estranhamente normal. Na primeira, sentado à mesa, comia tranquilamente uma
refeição, como um humilde plebeu qualquer. A segunda tela trazia o rei abraçado
intimamente à rainha Recata Primeira, que a maioria dos súditos sequer sabia
que existia. No terceiro quadro, O Estrambótico, visivelmente bêbado, parecia
rir muito de algo completamente bobo, com um copo de cerveja em uma das mãos. A
quarta pintura retratava o monarca completamente nu, durante o banho, exibindo
um corpo jovem e atlético, constrangedoramente bonito. O último quadro, o mais constrangedor,
mostrava Heteróclito sentado em um vaso sanitário, obrando tranquilamente
enquanto tirava uma caca do nariz.
Como
o imperador não costumava sorrir, ou mesmo expressar emoções que pudessem criar
algum tipo de interpretação errada acerca de seus pensamentos imperiais, o que
passava por sua cabeça naquele momento parecia indecifrável. Menos para Espúrio
Homúnculo, que o acompanhava tempo suficiente para perceber o quão
insatisfeito, e furioso, estava. Ver-se exposto daquela maneira, como um ser humano
comum, despido de sua magnificência real, o tornava normal demais, e isto era
inaceitável.
Percebendo
seu erro, o Conselheiro Real teve uma ideia que não apenas poderia salvar o
concurso, como sua própria pele. Antes do rei se pronunciar, anunciou, com
pompa e cerimônia, que havia um sexto quadro finalista, pintado pelo próprio
Espúrio. Surpreso com um potencial dote artístico daquele chato que o seguia a
tempos, Heteróclito aguardou até que um sexto grande quadro, coberto por um
tecido branco, fosse trazido com muita dificuldade, por seu pequeno seguidor.
A
tela encoberta foi colocada ao lado das demais. Com uma gentileza nervosa, Espúrio
conduziu sua majestade até a frente do quadro e pediu educadamente que não se
movesse. Então, puxando o tecido branco para trás da moldura, revelou o
misterioso afresco.
Primeiramente,
Heteróclito apenas franziu a testa. Em seguida, seus olhos brilharam. Algumas
pessoas juram que, ao olhar para o rosto do monarca, perceberam algo que
poderia ser um pequeno sorriso de canto de boca. Sua respiração ficou ofegante
por alguns segundos até que, solenemente, o grande imperador de Ádvena aponta
as duas mãos, palmas voltadas para cima, em direção ao quadro apresentado por
seu diminuto servo. A população foi ao delírio em salvas e aplausos
entusiasmados, jogando chapéus e expectativas para o alto, enquanto bradavam
alegremente. Por fim, dez trombetas barulhentas soaram novamente, anunciando
que o rei havia feito sua escolha.
Espúrio
Homúnculo ordenou que, imediatamente, as cinco telas derrotadas fossem
destruídas e incineradas. Seus autores foram banidos de Ádvena, sob a ameaça de
serem colocados a ferros caso dessem as caras por ali novamente.
Até os
dias de hoje, quem for visitar o belo Palácio de Quimera, em Ádvena, tem a possibilidade
de apreciar a histórica obra de Espúrio Homúnculo, que nos anais do reino
figura como o lendário e rico artista plástico real. Sobre uma pequena placa
dourada onde está grafado simplesmente “Heteróclito, O Estrambótico”,
contornado por uma moldura belíssima feita em madeira de burla, um enorme
espelho reflete exatamente a imagem de qualquer pessoa que pairar em sua frente.
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