CONTO 002 - A Carreira


Ilustração de Molina Campos
          Em uma estância da fronteira havia um cavalo famoso por ser um grande campeão de carreiras em cancha reta. Mouro era orgulho e mimo do patrão, que já havia faturado muitos prêmios e apostas. Entre os cavalos também era muito respeitado: o mais rápido e o que podia saltar mais longe, o maior e o mais bonito.
          Certo dia, Mouro resolveu parar de correr. Não por achar que estava ficando velho ou lento, simplesmente porque havia se cansado daquilo. Enfim entendera que a vida era preciosa demais para ficar apenas dando alegrias e riqueza para seu dono. Seu destino não poderia estar resumido apenas a correr e sua vida devia ter uma valia maior. O dono, não entendendo o que acontecera com seu melhor cavalo, soltou-o no campo, pensando que este adoecera de tanto se esforçar em nas corridas. E assim, na paz do campo, o cavalo conheceu a verdadeira liberdade.
O fazendeiro, não estando contente, resolveu treinar um novo potro: escolheu um jovem petiço chamado Zaino, forte e disposto como aquele que havia lhe dado tanto orgulho. E lucro. O potro parecia tão bom quanto seu antecessor, talvez melhor. Ganhava uma carreira atrás da outra. Contudo, o fato de ser parecido com o velho Mouro, em vez de orgulho, já estava chateando o jovem Zaino. Não paravam de compará-los. Estava cansado de ouvir os outros dizerem “Parece ser tão bom quanto o velho Mouro aposentado!”. Zaino estava indignado. “Que história é esta de tão bom quanto? Eu sou melhor!” E não restou alternativa senão chamar Mouro para uma prosa.
-Mouro velho, quero provar para este povo que eu sou o melhor cavalo daqui. Desafio-te para uma carreira até o Cerro do Coqueiro-Torto. Quem chegar lá primeiro vence.
O veterano corredor, pastando calmamente à sombra de um tarumã, sacode a cabeça, tira a crina da frente dos olhos e com muita calma diz:
-Escuta, meu rapaz, meu tempo de correr já terminou. Foi fase na minha vida, onde consegui fama e enchi a guaiaca do meu dono. Cansei disto tudo.
-Como, cansado de fama, de prêmios? Por acaso não gostavas de ter o pelo escovado, de ter cocheira especial, pasto de melhor qualidade? De namorar as éguas mais bonitas destes campos? Isto me cheira a desculpa, o que tu tens eu sei, é medo!
Mesmo com a raiva aparente do jovem cavalo, o velho Mouro manteve-se calmo. Ele entendia que aquilo tudo não passava de orgulho. Então deu meia volta e foi descendo em direção à sanga mansamente, dizendo:
-Medo? Não... simplesmente não quero mais correr. Se tu quiseres que eu diga a todos que é melhor, não tem problema, pra mim isso não tem mais importância.
O cavalo mais novo não se dá por vencido, sabe qual a única maneira de provar que realmente é melhor. Então resolve provocá-lo de todas as maneiras para forçá-lo a correr. Faz intrigas e fofocas, diz a todos que Mouro não tem mais o mesmo vigor, que se recusou a correr por medo de não conseguir nem chegar até o final. Mesmo com toda paciência que a vida lhe ensinara a ter, Mouro começou a se chatear com aquilo. De tanto ouvir a falação dos outros animais da fazenda, resolveu aceitar o desafio. Afinal, seria só mais uma corrida, a última, da despedida. O resultado nem seria o mais importante, apenas a oportunidade de fazer o jovem cavalo ter paz em seu coração.
Foi o anúncio mais esperado do ano. Toda a bicharada estava lá. Um capincho velho seria o juiz de linha e um carancho, famoso por ser ligeiro, seria o juiz que acompanharia todo o percurso. Sairiam da taipa do pequeno açude atrás do potreiro e quem chegasse primeiro ao Coqueiro-Torto seria o campeão.
Zaino parecia possuído, provocando todo o tempo o experiente cavalo:
-Te prepara para comer poeira, velho...
Mouro, que parecia impassível esperando o sinal de largada, começou a sentir algo que a tempos não sentia. Poderia vencer o Zaino, pois se a juventude não estava mais ao seu lado, a experiência faria a diferença. Conhecia os atalhos do percurso, onde os arroios davam vau, onde o chão era mais firme. Havia pensado muito na carreira, em deixar o jovem vencer tranquilamente, mas o coração disparou e o sangue começou a ferver. O velho ímpeto guerreiro reacendeu a chama de seus olhos. Ao mirá-los agora, pela primeira vez em sua vida, o jovem sentiu medo.
Ao sinal, os dois saíram.
Era incrível, mas os dois pareciam correr na mesma velocidade, cabeça com cabeça, cada vez
Ilustração de Molina Campos
mais rápidos. Logo que passaram a primeira sanga o Mouro assume a dianteira, deixando o outro mais de um corpo para trás. Já passavam de uma légua quando, de repente, Mouro começa a diminuir o passo. Zaino estranha a atitude do velho cavalo, mas mantém o ritmo das patas cada vez mais fortes. Quando abre uma boa distância começa a dar a carreira por vencida. Neste momento, o velho cavalo começa a relinchar:
-Para, Zaino! Para!!!
O potro olha para trás e, sem parar de correr grita:
-Tu pensas que me enganas, velho cretino? Falei que tu não aguentavas até o final!
Quando volta a cabeça para frente, avista um grande perau, aberto pela chuva. Um precipício enorme, onde mal se avistava o fundo. Sem conseguir parar, atira-se ao chão, mas não adianta, cai no perau e fica preso pelas patas, pendurado na borda do barranco, seguro apenas pela raiz de uma corticeira, que começava a ceder.
Mouro, vendo a situação do outro cavalo, não pensou duas vezes, deu a volta e entrou no perau pela frente, onde era possível chegar por baixo até onde o jovem estava.
Passaram-se alguns segundos e a raiz que prendia as patas do potro cedeu. Um som abafado é ouvido, seguido de um ronco horrível saído da boca do cavalo mais velho que se colocou abaixo do jovem, amortecendo sua queda. 
Zaino, desesperado, começa a trotar em volta do velho mestre e a berrar:
-Por que tu ficaste aí em baixo? Eu merecia ter caído. Foi eu quem te provocou desde o início. Foi meu orgulho, minha inveja!
Mouro, em seus últimos suspiros ainda teve tempo de dizer:
-Quando eu corria, sabia que tinha que buscar uma razão maior do que simplesmente ser o melhor e o mais rápido. Hoje tu me ajudaste a descobrir a razão da minha existência. Eu sempre soube que tinha este perau, mas queria saber se teu orgulho era grande o suficiente para fechar teus olhos. A lição que tu aprendeste hoje, tu vais levar para toda vida, e repassar para os que vierem depois de ti.
-Mas não é justo!!!- diz o jovem cavalo.
-Agora sei qual a razão do meu viver: ensinei-te o que é humildade. Tenho certeza que tu vais lembrar disto para sempre.
Uma baba vermelha começa a escorrer-lhe pelo canto da boca. Então, Mouro fecha os olhos. Vai a galope para o céu dos cavalos.
Zaino aprendeu sua lição e, apesar de continuar correndo, nunca mais deixou de respeitar a história daqueles que pararam de correr. Em vez de tentar provar que é melhor, procura-os na sombra dos capões de mato, onde sempre pergunta coisas sobre a vida e sempre aprende um pouco mais sobre ela.



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Ilustrações de Alfredo Molina Campos

Comentários

  1. Por isso que é sempre bom escutar os conselhos dos mais (velhos) experientes, não competir com eles.
    Achei muito legal está história.
    Abraços Mari.

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