JANELAS
Leandro de Araújo
Faz
tanto tempo que já nem lembro mais quando foi a primeira vez que abri estas
janelas. Mas, assim mesmo, de par em par, há muito percorro a casa todas as
manhãs para deixar a luz entrar. Essa luz bonita, algo entre verde e azul, que
anuncia um novo dia, oportunidade para novos começos. A única certeza que
tenho é que chegará o dia em que será a última vez. Porque a vida é assim: no
começo da jornada olhamos para nossas pegadas, porque a única coisa que temos
são os rastros que vão ficando para trás. Quando não enxergarmos mais os
primeiros passos, sequer lembraremos de onde começou a estrada, e é aí que teremos
uma vaga ideia de até onde ela poderá nos levar.
“Côsa”
linda olhar o campo pela manhã. É nessa hora que o verde me invade as vistas,
clareia as ideias. Sim! Os olhos, que são janelas da gente para o mundo, também
precisam ser abertos para deixar a luz do sol entrar. O clarão de vida que que
me penetra as retinas me faz sentir vivo também. Acho que faço parte desse
campo como cada pequeno ser que nele vive. Destas janelas olho para a imensidão
verde e sei que ela me olha de volta.
O
mundo é muito grande pra lá de onde a vista alcança. Atrás daquele capão de
mato, daquela casa branca para lá da várzea, há pessoas, carros, barulho, medo,
maldade. Sei que tem coisas boas por lá também! Não sou nenhum matuto! Mas lá
no concreto frio dos arranha-céus não tem essa paz, essa luz bonita que entra
pelas janelas todas as manhãs. Ah! Mas não tem mesmo!
Respiro
fundo e deixo esse ar com cheiro de mato invadir meu peito. O mesmo que me
invadia os pulmões quando piá, que tem um frescor de açude no verão. A brisa
gelada que agora me toca o rosto é filha do mesmo vento que bagunçava os
cabelos do guri, que empinava pandorga, que girava cata-ventos... o mesmo vento que
enrolava as roupas do varal, deixando a mamãe louca da vida. Esse ar sublime
que mistura o aroma do mato e a fumaça do fogão a lenha, é só por aqui que
tem. Acho até que é ele, o vento, o grande pintor que faz o azul do céu manchar
o verde do pasto, na forma deste açude em frente “às casas”, que daqui parece
tão grande e tão tranquilo.
Hoje
notei que o dia amanheceu diferente. Há qualquer coisa de novo nesse ar. Abrir
as janelas, olhar o campo... parece que algo não está como ontem. Parece até
que esta paisagem está querendo me contar algo. O campo sussurra. Sua voz está no
canto do sabiá, no latido do cusco, no som que a água da sanga faz quando chove
forte. Me vem aos ouvidos e vai embora. Tenho vontade de gritar a ele que pode
me dizer o que quiser sem sussurrar. Fale alto! Diga logo! Somos amigos há
tanto tempo! Não temos mais segredos um com o outro. Olho para frente mais uma
vez e ele me encara novamente. Sim! Tem algo para me dizer e já sei onde posso
ouvir.
Desço
até a cozinha e aqueço a água para o chimarrão, minha primeira companhia da
manhã. Quando faz frio, me abanco perto do fogo e proseio com as labaredas. É
um amigo e tanto este fogo que me aquece o inverno. Nos dias quentes de verão
sento aos pés da figueira e chimarroneio por lá, de frente para o açude. Miro a
várzea lá no fundo, algumas vacas e o cavalo que dá “carona” para um bem-te-vi.
Fico na companhia dos maçanicos e canários, das flores e árvores, do cusco que
vem me lamber as mãos pedindo um carinho. Companhias que guardam a casa com cor
e poesia. Aqui fora, em frente à casa, o mate ganha mais sabor, porque a ele se
misturam os matizes deste lugar abençoado, de onde fui guri, homem e hoje sou
este velho que mateia e fala sozinho.
Estranho...
Jurava que estamos no inverno. Deveria estar tão frio hoje, mas sinto um calor no
peito. Um aperto quente no coração. Volto os olhos para trás e vejo a casa onde
nasci e cresci. Ela faz parte da paisagem, tanto quanto o açude ou a figueira. Esta
casa, que me conta histórias e segredos, está viva. Vai abrigar os que virão
depois de mim, que hão de amar este lugar tanto quanto amei. Que amo!
O
campo volta a sussurrar seus segredos. Agora parece que vem de todas as direções.
Finalmente, creio que entendo! Ele me pede para olhar as janelas... Que lindas
que elas são! Lá estão se abrindo novamente. Mas eu já não as abri? Juro que
abri! Percebo que quem está lá, abrindo-as de par em par, deixando a luz entrar
e respirando o ar da manhã é... Não pode ser! Sou eu! A cabeça erguida de melena
moura, o olhar de guri, o sorriso... Só pode ser eu! Mas como posso estar lá,
se estou aqui?
Sim, sou eu. Pela última vez sou eu abrindo as janelas e me preparando para cevar mais um mate. Para sentar-me próximo ao fogo nesta manhã de inverno e com ele aquecer o corpo e o coração, já cansados pelo tempo. Grato por deixar o dia entrar em casa, iluminado pelo verde e azul do campo. Grato por respirar este ar que serve a mim da mesma forma que me serviu quando guri. Esta mesma terra a quem agradeço este último mate junto do fogo, que é calor e amigo. Mas não me despeço, pois sei que a partir de hoje vou fazer parte desta mesma paisagem que a casa admira. Debaixo desta figueira, com o mesmo amor, a partir de hoje também olharei por ela, eternamente iluminando todas as manhãs, de par em par, suas lindas janelas.
No interior da casa, em frente ao fogão à lenha, uma cuia de mate caída no chão, um braço estendido... no rosto sereno, as janelas fechadas.
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