CONTO 022 - Bonecas (Suspense/terror)

 

    BONECAS
    Leandro de Araújo


    Susy discretamente espia por entre as demais. Sabe que este momento, logo antes do amanhecer, é o único em que pode arriscar desobedecer às expressas ordens dela, a Dona. Sabe que as outras morrem de medo e, mesmo podendo, sequer movem um dedo que for. Mas Susy, que nunca havia se encaixado no esperado perfil de boneca bonita e obediente, inclina o pescoço levemente para o lado para poder ver através das cabeças e cabelos das que estão em sua frente. Próximo à porta do quarto, a aterradora imagem de uma das poucas que ousaram desobedecer e que foram pegas durante a tentativa. Pendurada na ponta de um barbante por uma das pernas, sem os braços e a cabeça, Lollipop balança suavemente. Um claro recado da Dona, que nesta hora dormia tranquilamente.

    Assim que o sol começa a despontar no horizonte, iluminando os casebres da aldeia, uma escura névoa se forma no quarto e cobre os olhos de todas. Um arrepio assustador toma conta de seus corpos feitos de plástico ou pano, que aos poucos vão ficando completamente rígidos, imóveis. Sua consciência aos poucos vai apagando, até não haver mais nada além de escuridão e silêncio. Então, a menina desperta, e vai seguir sua vida, como uma criança qualquer.

    Ao final do próximo dia, a Dona entra em seu quarto. O rosto fino e o sorriso de menina sapeca contrastam com seu olhar. Não é fácil definir aqueles grandes olhos negros, que ora pareciam vazios, ora tristes. Vez por outra, era possível ver através deles uma maldade tamanha que sequer deveria caber em um corpo tão frágil de criança. Vestindo um vestidinho floreado, onde predominava os tons rosa, os pequeninos pés descalços e, sobre a cabeça, uma tiara sustentando uma flor artificial com grandes pétalas cor-de-rosa. Os dedos finos e compridos passeavam pelas bonecas, como se estivesse escolhendo aquelas com as quais iria brincar.

    Havia muito silêncio na casa, o que dava a entender que as demais pessoas, principalmente adultos, já deviam estar dormindo. A Dona então pega quatro bonecas: duas que representavam figuras adultas, com cabelos compridos, usando sapatos de salto e com as curvas características em suas silhuetas. As outras duas representavam bebês, tinham corpo de pano, possuíam chupetas, usavam roupinhas estampadas com ursinhos e não tinham cabelos. O armário de bonecas era uma única peça fina e comprida, dividido por quatro prateleiras, onde várias bonecas, de diferentes tamanhos e modelos, ficavam. Algumas estavam sentadas, outras em pé. Os bebês ficavam deitados uns sobre os outros, alguns de bruços.

    As quatro escolhidas foram colocadas no chão do quarto, sobre um tapete vermelho que tinha ao centro uma estrela amarela. As duas bonecas adultas estavam de pé, uma ao lado da outra, enquanto os bebês estavam deitados em bercinhos, onde pareciam dormir com os olhinhos fechados. O cenário para a brincadeira estava montado. Tudo parecia tão lindo, tão ingênuo. O retrato lindo de uma pequena menina brincando com suas bonecas.

    A garotinha ergue-se e vai até o interruptor. Desliga a luz amarelada da lâmpada incandescente. Em seguida, traz um pires de cerâmica onde, em seu centro, uma vela branca com sua chama tremeluzente ilumina o quarto. A Dona então coloca o pires com a vela no chão, próximo às bonecas. Logo, vai até sua cama e tira debaixo de seu travesseiro uma pequena lâmina prateada. Senta-se ao lado dos brinquedos e, sem esboçar qualquer sentimento, segura firmemente com a mão esquerda a lâmina e faz um corte na palma de sua mão direita. Imediatamente um pequeno filete de sangue começa a escorrer pelo seu braço. A menina ergue a mão sobre a vela e deixa pingar uma gota do líquido vermelho e quente que brota de sua mão. A linha vermelha percorre toda lateral da vela, se misturando à cera derretida, formando uma imagem que lembra veias e artérias vistas através de uma pele fina. Quando finalmente o sangue chega até o pires, a pequena garota ergue a mão direita na direção das bonecas e sussurra “Despertem!”.

    Nas paredes do quarto as sombras das bonecas projetadas fazem-nas parecerem enormes. O treme-treme da chama faz com que as projeções façam um suave balé, embalados por sua luz. No entanto, a partir do momento em que a Dona proferiu sua ordem, as sombras projetadas começaram a se mover de uma forma diferente. A representação dos braços, pernas e cabeças começam a se contorcer, como se de pessoas que estivessem sentindo dores agonizantes. A sombra das bonecas bebês se debatem freneticamente, como se asfixiando. Depois de cerca de dois minutos as sombras começam a desacelerar os movimentos, até ficarem suaves. A criança então sorrindo, apesar dos olhos trazerem maldade e prazer. As quatro bonecas no chão se movem lentamente, tal e qual pessoas vivas de verdade. As adultas olham para o próprio corpo tentando entender o que está acontecendo, os bebês abrem os olhos e ficam piscando, tentando se acostumar à forte luz que a vela emitia. As quatro bocas pequeninas fechadas não conseguiam reproduzir som algum, mas seus olhos plásticos traziam desespero e dor.

    - Pronto, meninas, agora vamos brincar. – sussurra a Dona, falando calmamente segurando uma das bonecas no ar.

    - Susy, hoje você será a mamãe. Bella vai ser a empregada que cuida da casa e dos bebês. – enquanto fala isso, a menina põe Susy sentada em uma cadeirinha de plástico azul. Em seguida, coloca Bella entre os bebês que se contorcem em seus bercinhos, balançando os bracinhos feitos de pano, o que faz suas mãozinhas de plástico baterem nos bercinhos fazendo um barulho abafado.

    - Meninos, comportem-se! Senão vou dar um castigo! – e dirigindo-se à Bella, que ainda não conseguia se equilibrar direito nas finas pernas plásticas e nos sapatos com um enorme salto, ordena com o olhar raivoso:

    - Não vai cuidar deles como deveria, sua inútil? Então aprenda uma lição! – com a lâmina, a Dona segura com força um dos braços da boneca que se debatia desesperadamente e corta uma de suas mãos. Bella não consegue gritar, mas em seus olhos é possível perceber o quanto isso lhe causou dor. Do braço cortado da boneca um pequeno filete de sangue escorre, misturando-se ao vermelho do tapete. A chama da vela brilha ainda mais intensamente.

    Susy, que aterrorizada assiste a tudo, tenta gritar por socorro. Sua pequena boca, no entanto, sequer se abre, estampando apenas um sorriso artificial. De seus olhos, assim como dos olhos de Bella, lágrimas escorrem lentamente. Os bebês, com suas chupetas magnéticas coladas no rosto, se debatem em seus bercinhos com seus olhos arregalados fixamente olhando para o teto escuro. Ao tentar levantar-se da cadeira de plástico azul, Susy se desequilibra e cai, ao que a menina lhe dá um safanão. O golpe joga Susy violentamente para baixo da cama.

    - Bonecas idiotas! Preciso de outras mais espertas para brincar. – novamente se dirige ao armário das bonecas e traz mais duas das adultas.

    - Bárbara e Lili, brinquem direito senão vão para o castigo!

    Tudo se repete, até que a garota começa a dar sinais de que está com muito sono. Boceja, esfregas os olhos, balança a cabeça, agitando os cabelos longos e negros. Pega as bonecas que estavam no chão e leva-as até o armário, onde as põe novamente no lugar. Antes de soprar a vela, volta-se aos brinquedos e fala baixinho:

    - Não tentem nenhuma gracinha. Logo o dia vai amanhecer e vocês voltarão a ser as velhas e bobas bonecas de sempre. Se comportarem bem, amanhã brincamos novamente. Se não, vão fazer companhia para a Lollipop. – nisso, vai até a boneca sem a cabeça e os braços e dá um tapa, o que a faz ficar balançando de uma maneira medonha. No armário, as bonecas tremiam. Bella, sem uma das mãos, era a mais apavorada.

    A Dona tira a tiara e o vestido. Coloca um pijama rosa com pequenos unicórnios estampados. Deita em sua cama, não sem antes colocar a vela apagada sobre a escrivaninha e a lâmina embaixo do seu travesseiro. Em pouco tempo está ressonando como um gatinho. De seus lugares, as bonecas não ousam se mover, apenas olham para o quarto escuro aguardando o amanhecer, quando elas voltarão a ser apenas os brinquedos que jamais deveriam deixar de ser, sem consciência, dor ou sofrimento.

    Enquanto aguardavam sem nada mais poder fazer, as bonecas percebem que algo se movia no chão do quarto. Uma pequena mulher de cabelos vermelhos compridos, usando um vestido de festa e calçando bonitos sapatos de salto alto se arrastava pela penumbra, saindo debaixo da cama da Dona. Era Susy, a boneca que fora jogada para baixo da cama, e lá ficara esquecida pela menina.

    Susy sabia que não tinha muito tempo. Em poucas horas o sol já estaria brilhando e, se não fizesse alguma coisa, todo aquele terror voltaria a se repetir na próxima noite. Sem olhar para trás, a pequena criatura sai cambaleante do quarto, sob o olhar entre curioso e assustado das demais bonecas. Pouco tempo depois volta empurrando uma pequena lata. Ao chegar mais perto, as demais conseguem ver na penumbra que se tratava de uma embalagem onde havia estampada a figura de um rato deitado de costas, com os olhos fechado. Era veneno! Um potente veneno de rato.

    Como não consegue abrir a lata, a boneca encontra no chão a mão decepada de Bella e a usa como uma alavanca. A ideia dá certo. De dentro da lata exala um cheiro forte de morte, que toma conta do quarto. De forma muito cuidadosa, a pequena boneca de cabelos vermelhos deixa a lata de veneno para trás e sobe pelo pé da cama, próximo à cabeça da menina, que neste momento dormia profundamente. Ao subir no colchão, Susy começa a se arrastar por baixo do travesseiro. Desaparece ante o olhar curioso e angustiado das demais que a miravam do armário. Alguns segundos depois, a boneca sai debaixo do travesseiro arrastando a lâmina prateada. As outras, assistindo a cena, imaginam que a pequena boneca tentaria cravar a lâmina na menina, mas isso não seria possível, pois ela mal tinha forças para arrastar a arma. O que faz então surpreende a todas as bonecas, que em silêncio jogam olhares admirados à Susy.

    O sol começa a surgir no horizonte. A pequenina mulher de sapatos de salto alto mal tem tempo para empurrar a lata para baixo da cama. Assim que esconde o veneno mortal, a névoa escura toma conta do quarto. Seus olhos ficam vazios de sentimentos e seu corpo começa a ficar rígido novamente, até que a escuridão e o silêncio voltam a ser a única coisa que existe para ela.

    Na noite seguinte a menina volta a entrar em seu quarto. Tudo então se repete. O vestido, a tiara, os pés descalços. O quarto escuro, a vela acesa, a lâmina. Quatro bonecas estavam no centro do quarto, sobre um tapete vermelho com sua estrela amarela. A Dona, segurando uma lâmina com a mão esquerda, crava sua ponta em sua mão direita. O sangue escorre sobre a vela. A mão erguida no ar e o pronunciamento mágico:

    - Despertem!

    No mesmo momento em que as sombras das bonecas começam a se contorcer, projetadas nas paredes do quarto, uma outra sombra, maior, começa a se agitar. Desta vez, acompanhada de um grito de dor. Era a menina, a Dona das bonecas, que se curvava no chão, trazendo em seu rosto uma angustiante expressão de dor. Sem compreender direito o que estava acontecendo, tenta se levantar mas não consegue. Suas pernas não a obedecem mais. Sente que seu coração parece que vai saltar pela boca ao mesmo tempo que seus pulmões procuram desesperadamente por ar, que não encontram de jeito algum. Antes de tudo se apagar, a Dona revira-se no chão e vê, embaixo de sua cama, uma pequena boneca de cabelos vermelhos, com um sorriso artificial nos lábios, sentada em cima de uma lata de veneno para ratos. A boneca olhava fixamente para a menina, com uma expressão de prazer no rosto feito de plástico.

    Aqueles que encontraram o corpo da menina pela manhã disseram que ela havia morrido em função de ter se cortado com uma lâmina envenenada. Provavelmente suicídio. Sob a cama encontraram a lata de veneno aberto, com uma pequena mão de plástico grudada na tampa. Além da lata que continha a substância mortal, nada mais foi encontrado sob a cama. Dizem que a polícia notou que no armário de bonecas havia um espaço vazio. Jamais encontraram o brinquedo que deveria estar ali. O mistério da morte da Dona das bonecas e o desaparecimento do brinquedo que faltava permanece até hoje.




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