Ao
abrir a gaveta e remexer naquelas pastas, não imaginava que o encontraria. Apareceu
como aparecem aquelas pessoas na nossa vida, que temos certeza de que
conhecemos muito bem em alguma época passada, mas que há décadas não víamos. Ou
como um estranho que nos olha e parece saber mais sobre nós, que nós mesmos.
Era
um livro. Mas não um livro como estes que encontramos em bibliotecas e
livrarias. Sua capa tinha os textos manuscritos, à caneta, nas cores preto e
vermelho. Percebe-se que o autor tentou fazer algum tipo de letra “trabalhada”,
como uma dessas fontes especiais dos editores de texto dos computadores, mas
nem de longe apresentava as características simétricas ou padronizadas de um
computador. Na parte de cima da capa o título “Do passado ao futuro”, em fôrma
grande e vermelha. No rodapé, em letras menores, também vermelhas, “Leandro
Araújo E142”. Ao centro um retrato em preto e branco de um senhor muito sério, com
cabelos e bigode pretos, vestindo um terno claro. Ao lado da foto, usando a
mesma fonte, o autor escreveu com caneta preta “Januário Araújo”,
verticalmente, nome e sobrenome lado a lado. Abaixo da foto uma legenda em
preto dizia apenas “JDA (7/7/1911) Rosário do Sul”. As páginas amareladas pelo
tempo, restauradas aqui e ali com plástico “contact” e alguns grampos
enferrujados, foram datilografadas por alguém que, visivelmente, jamais teria
usado uma máquina de escrever antes de compor aquela obra, seja pelos erros gramaticais,
seja pela evidente falta de técnica para usar o equipamento.
Algo
como um calor estranho começou a emanar das laudas amareladas. Qual uma brisa
me tocou o rosto, enrubesceu as orelhas, arrepiou a nuca. A força e o calor
foram tão intensos, que me fizeram fechar os olhos.
Ao
abri-los, estava em 1991, dentro do ônibus que fazia a linha entre São Leopoldo
e Novo Hamburgo. Ia de casa para a Fundação Liberato Salzano, escola técnica
onde estudava. Apesar de ter dezesseis anos, eu era muito tímido e, por isso, não
interagia com os demais jovens da minha idade que lotavam o ônibus. Tinha
poucos amigos com quem conversar na viagem diária. Costumava ir em silêncio,
observando os outros ou o mundo do lado de fora da janela de vidro. Chegando ao
ponto de desembarque, ainda andava por cerca de vinte minutos até a entrada da
escola.
Naquele
dia teríamos três períodos de Língua Portuguesa. Era curiosa a relação de amor
e ódio que mantinha com aquela matéria. Amor, porque adorava escrever, e nas
aulas de Língua Portuguesa que tínhamos oportunidade de fazer produções
literárias. Ódio, porque considerava as aulas de gramática muito chatas. Para
mim, escrever era uma chance de conhecer o pensamento e os sentimentos de outra
pessoa, enquanto estudar gramática era o mesmo que ver seus órgãos internos
expostos.
A
professora Regina Ungaretti era mais baixa que a maioria dos estudantes. Tinha
vinte e oito anos, falava alto e ria muito. Suas aulas eram muito boas, porque
sabia dosar descontração e conteúdo de uma maneira que, muitas vezes, estávamos
nos divertindo enquanto aprendíamos. Colocava apelidos em alguns alunos, fazia
piadas com outros, mas sabia muito bem com quais podia se dar este tipo de
liberdade. Com este seu jeito de ser educadora, era respeitada e querida por
todos. Naquele dia, fui para sua aula com grande expectativa, pois ela havia
nos anunciado na semana anterior que teríamos um grande projeto de produção
textual pela frente. Idealizava mentalmente uma chance de criar seres,
sentimentos, pensamentos e, quem sabe, segredos. Isso já colocava minha
imaginação a funcionar antes mesmo de chegar na escola.
Contudo,
a proposta era diferente daquela que havia construído internamente. Teríamos
que fazer uma biografia de alguém de nossa família. Poderia ser pai ou mãe, por
exemplo. Entrevistar esta pessoa e transcrever um pouco de sua vida em um
pequeno livro, com capa, sumário, prefácio. Tudo aquilo que um bom livro que se
prese apresenta. Não sabia por onde começar, porque normalmente usava meus
personagens para traduzir coisas que haviam guardadas dentro de mim. Escrever
sobre alguém que existia de verdade soava como se estivesse fazendo uma imagem
estática, como uma fotografia, livre de sentimentos e segredos, bidimensional e
rasa.
Fui
para casa naquele dia sem definir quem escolheria. Não que meus pais não
pudessem relatar fatos interessantes de suas juventudes, mas definitivamente
minha família não costumava manter demonstrações de afetividade suficientemente
fortes para que estabelecêssemos um diálogo neste nível. Não havia abraços,
beijos ou declarações de afetividade. Éramos uma família sem a intimidade do
carinho. O menino de dezesseis anos não questionava isso, porque crescera nesse
ambiente, que para si era perfeitamente natural. Foi então que me veio a ideia
de entrevistar a única pessoa da minha família com quem, vez por outra, sentava
para ouvir histórias que poderiam ser bons capítulos de um livro biográfico.
Alguém cuja vida ainda representava alguns mistérios e, talvez, segredos.
Meu
avô, Januário Araújo, era viúvo e tinha oitenta anos. Apesar da idade, era dono
de uma saúde invejável e adorava contar histórias de quando morava na região da
campanha, no interior do município de Alegrete. Contava sobre caçadas e
pescarias, sobre uma época e um lugar onde as leis da cidade não se aplicavam,
como nos filmes de faroeste, com cavalos, armas, homens corajosos e horizontes
tão grandes, que o menino da cidade sequer conseguia imaginar. Mas as histórias
que mais faziam seus olhos brilhar eram aquelas que narravam suas grandes paixões:
abelhas e mel. Não cansava de repetir casos onde passava muito trabalho
procurando enxames de abelhas silvestres para pegar seu doce tesouro. Pois essa
pessoa, tão íntima quanto suas histórias me permitiam ser, seria o personagem
de meu projeto de Língua Portuguesa. Havia sentimentos e segredos o suficiente
ali para construir uma boa biografia. E assim, durante três finais de semana seguidos,
ia para Sapucaia do Sul, onde ele morava, e ficava com ele, anotando suas
histórias e fazendo tantas perguntas quanto fossem necessárias para construir
uma boa narrativa. Em suas histórias, um fato me impressionou muito. Ele não
chegara a conhecer seu avô, e seu pai era apenas uma vaga lembrança de
infância.
Na
quarta semana do projeto eu deveria transcrever meus rascunhos para o livro
definitivo. Como minha letra era muito feia, pensei em um toque de ousadia e
pedi emprestado para um vizinho, que era professor, sua máquina de escrever. O
curioso sobre este fato é que eu nunca havia usado uma máquina destas. O vizinho
me deu algumas dicas de como usar o equipamento, que eu levei para casa. Passei
a semana inteira datilografando o livro. Cortei folhas de papel A4 ao meio,
para que meu projeto tivesse as dimensões próximas a de um pequeno livro. Meu
texto era tão simplório quanto o texto de qualquer jovem de dezesseis anos, com
muitos erros de grafia e gramaticais. No entanto, havia tanto sentimento no que
estava escrito, que os erros talvez passassem desapercebidos para alguém que se
dedicasse a apreciar mais seu conteúdo que sua forma. Escolhi um retrato em
preto e branco do meu avô com 26 anos para colar na capa e mais algumas fotos antigas
que peguei escondido em uma caixa na sua casa, para ilustrar o capítulo final. Mas
ainda faltava alguma coisa. Algo que fizesse meu livro mais que uma simples
coleção de causos, relatos e fotos antigas.
Meu
avô não havia conhecido seu próprio avô. Para o menino de dezesseis anos, tão
ligado à presença do pai de seu pai, isso era algo incompreensível. Devia haver
algum mistério nessa história. Soube algo vago em torno de um homem casado que havia
engravidado uma mulher que não era sua esposa, e cujo pai, um político de
Rosário do Sul, que também era um poderoso estancieiro, “resolvera” a questão
enviando a grávida e seu pequeno filho para um lugar distante, para uma “nova
família”. Meu avô sabia apenas o nome deste estancieiro: Coronel Sabino Araújo,
seu avô.
O
trabalho era para ser entregue na segunda-feira. No sábado fui para a Biblioteca
Pública Municipal de São Leopoldo e comecei a procurar livros que falassem da
história das cidades do Rio Grande do Sul. Não existia internet em 1991, e as
respostas só podiam ser encontras em livros e bibliotecas. Encontrei uma
coleção de enormes publicações, muito antigas, chamada Enciclopédia dos
Municípios do Rio Grande do Sul, e lá localizei o que procurava: registros
históricos sobre o município de Rosário do Sul. Entre eles, o retrato de um
elegante senhor de terno e gravata, usando um chapéu de abas curtas. Sob a fotografia
a legenda “O abastado estancieiro e chefe político coronel Sabino Araújo”. Na
sequência, dois parágrafos retratavam a importância política e econômica do
homem, no restante do capítulo, detalhes sobre suas estâncias. Não havia
dúvidas. Só poderia ser ele! Fiz fotocópias da imagem e dos parágrafos
descritivos. Mesmo com meu livro já finalizado, colei mais duas meias folhas no
final e encerrei minha obra com uma apresentação sobre o avô que Januário
Araújo nunca havia conhecido. Inseri à caneta o “novo capítulo” no sumário.
Na
segunda-feira levei o livro e entreguei para professora Regina Ungaretti. Não
lembro quanto tempo depois exatamente ela me devolveu. Tampouco lembro a nota que o
projeto recebeu. E para ser sincero, isto já não me importava mais. Aquele
livro fazia parte de mim, como um pedaço da minha memória que havia se
materializado.
Pouco
mais de um mês depois que recebi o livro avaliado pela professora, meu avô
estava em minha casa em São Leopoldo, em um jantar onde comemorávamos o
aniversário do meu pai. Esperei algumas pessoas irem embora e, quando estávamos
apenas meu avô e eu sentados conversando, mostrei-lhe o livro. Curioso, folhou as
páginas, sem se ater muito ao texto, mas com um sorriso orgulhoso de canto de
boca. Ao chegar nas páginas finais, vi que sua expressão ficou séria, o cenho
franzido, o olhar fixo. Ergueu os olhos para mim, sorriu e disse “É esse
mesmo.” Sem dizer mais nenhuma palavra, ainda ficou alguns minutos olhando a
foto, as vezes sorrindo, as vezes sério. Percebi que seus olhos ficaram
molhados. Talvez por causa da fumaça que vinha da churrasqueira. Talvez por
algum outro motivo. Não sei. Fechei os olhos para ficar apreciando aquele
momento sem ver, apenas sentir na pele, na memória.
Ao
abrir os olhos, o livro estava nas minhas mãos novamente. Separei uma pastinha
plástica e o guardei, junto de alguns recortes de jornais antigos e algumas outras
memórias que estavam na gaveta. Talvez um dia o utilize em algum trabalho da
faculdade, ou apenas como desculpa para reviver boas lembranças, que andavam
esquecidas. Até lá, espero que o livro continue guardando um pouco do passado
do meu avô, e muito de minhas memórias.
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Em 2008 o livro ganhou as mãos, o olhar e a sensibilidade de poeta Fernanda Irala. Deste encontro nasceu o poema "Os Olhos do meu Avô", que participou do 9º Seival da Poesia Gaúcha, de São Lourenço do Sul. Foi ao palco para sua apresentação em 26 de junho daquele ano, com o acompanhamento musical de Geraldo Trindade e interpretado por mim.
Um dia esse Livro, que é poesia, vida e amor chegou nas minha mãos. A Singeleza era o que fazia dele uma jóia, uma preciosidade, um portal na história de uma família. Por isso o meu respeito e cuidado por cada uma das palavras, fotos, folhas e memórias. E me apoderar e todas as sensações que faz desse livro uma Jóia me causou uma imersão afetiva numa estória que não era minha, mas da qual como se fosse "testemunha ocular" eu estava lá dentro. Fui levada pelo amor de um neto a um avô e de um avô por um neto, a ordem pouco importa. Mas estamos falando de um início e um fim que nunca sabemos de verdade onde inicia...sabemos só que nunca acaba. Um avô é nossa história viva, o baluarte da nossa existência. Um neto é a certeza da infinitude é a certeza de habitar pra sempre no coração dos nossos. Eu pessoalmente, sou imensamente grata ao Leandro por ter permitido que tenha estado em algum cantinho dessa estória, imersa em poesia vida e amor.
ResponderExcluirFernanda, muito obrigado pelo carinho... e por ter feito parte desta memória com tanta sensibilidade. Um grande beijo!
ExcluirLeandro, Viviane Araujo Gonçalves aqui! Sou bisneta do Cor. Sabino Araújo. Emocionei. Não precisa ler o seu livro para ter a certeza que é uma relíquia, que nos remete ao passado, com boas lembranças e sensação de sabermos de onde viemos. Parabéns. Eu e meus irmãos (Lourival e Paulo), fizemos a árvore genealógica familiar, e, graças à contribuição de uma historiadora, avançamos muito nos registros dos nossos ascendentes da linhagem "Araujo". Se tiveres interesse, posso te enviar. Abs da parente, Viviane
ResponderExcluirOi, Viviane. Tudo bem, parente?
ExcluirMuito feliz com teu depoimento. É uma história de família, pessoal... mas acho que pode dizer muito, sobre muitas coisas. Por isso resolvi compartilhar. Fiz minha árvore também, então devemos ter muitos pontos em comum, principalmente nas referências antigas. Um abração e obrigado pelo carinho!
Seguindo.... outra pessoa que nos ajudou e continua nos apoiando é João Alberto Andrade, inclusive foi ele que nos colocou em contato com a historiadora.
ResponderExcluirObrigado! Vamos procurar este amigo... quem sabe não temos algumas coisas legais para trocar? Abração!
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