CONTO 012 - O livro

Ao abrir a gaveta e remexer naquelas pastas, não imaginava que o encontraria. Apareceu como aparecem aquelas pessoas na nossa vida, que temos certeza de que conhecemos muito bem em alguma época passada, mas que há décadas não víamos. Ou como um estranho que nos olha e parece saber mais sobre nós, que nós mesmos.

Era um livro. Mas não um livro como estes que encontramos em bibliotecas e livrarias. Sua capa tinha os textos manuscritos, à caneta, nas cores preto e vermelho. Percebe-se que o autor tentou fazer algum tipo de letra “trabalhada”, como uma dessas fontes especiais dos editores de texto dos computadores, mas nem de longe apresentava as características simétricas ou padronizadas de um computador. Na parte de cima da capa o título “Do passado ao futuro”, em fôrma grande e vermelha. No rodapé, em letras menores, também vermelhas, “Leandro Araújo E142”. Ao centro um retrato em preto e branco de um senhor muito sério, com cabelos e bigode pretos, vestindo um terno claro. Ao lado da foto, usando a mesma fonte, o autor escreveu com caneta preta “Januário Araújo”, verticalmente, nome e sobrenome lado a lado. Abaixo da foto uma legenda em preto dizia apenas “JDA (7/7/1911) Rosário do Sul”. As páginas amareladas pelo tempo, restauradas aqui e ali com plástico “contact” e alguns grampos enferrujados, foram datilografadas por alguém que, visivelmente, jamais teria usado uma máquina de escrever antes de compor aquela obra, seja pelos erros gramaticais, seja pela evidente falta de técnica para usar o equipamento.

Algo como um calor estranho começou a emanar das laudas amareladas. Qual uma brisa me tocou o rosto, enrubesceu as orelhas, arrepiou a nuca. A força e o calor foram tão intensos, que me fizeram fechar os olhos.

Ao abri-los, estava em 1991, dentro do ônibus que fazia a linha entre São Leopoldo e Novo Hamburgo. Ia de casa para a Fundação Liberato Salzano, escola técnica onde estudava. Apesar de ter dezesseis anos, eu era muito tímido e, por isso, não interagia com os demais jovens da minha idade que lotavam o ônibus. Tinha poucos amigos com quem conversar na viagem diária. Costumava ir em silêncio, observando os outros ou o mundo do lado de fora da janela de vidro. Chegando ao ponto de desembarque, ainda andava por cerca de vinte minutos até a entrada da escola.

Naquele dia teríamos três períodos de Língua Portuguesa. Era curiosa a relação de amor e ódio que mantinha com aquela matéria. Amor, porque adorava escrever, e nas aulas de Língua Portuguesa que tínhamos oportunidade de fazer produções literárias. Ódio, porque considerava as aulas de gramática muito chatas. Para mim, escrever era uma chance de conhecer o pensamento e os sentimentos de outra pessoa, enquanto estudar gramática era o mesmo que ver seus órgãos internos expostos.

A professora Regina Ungaretti era mais baixa que a maioria dos estudantes. Tinha vinte e oito anos, falava alto e ria muito. Suas aulas eram muito boas, porque sabia dosar descontração e conteúdo de uma maneira que, muitas vezes, estávamos nos divertindo enquanto aprendíamos. Colocava apelidos em alguns alunos, fazia piadas com outros, mas sabia muito bem com quais podia se dar este tipo de liberdade. Com este seu jeito de ser educadora, era respeitada e querida por todos. Naquele dia, fui para sua aula com grande expectativa, pois ela havia nos anunciado na semana anterior que teríamos um grande projeto de produção textual pela frente. Idealizava mentalmente uma chance de criar seres, sentimentos, pensamentos e, quem sabe, segredos. Isso já colocava minha imaginação a funcionar antes mesmo de chegar na escola.

Contudo, a proposta era diferente daquela que havia construído internamente. Teríamos que fazer uma biografia de alguém de nossa família. Poderia ser pai ou mãe, por exemplo. Entrevistar esta pessoa e transcrever um pouco de sua vida em um pequeno livro, com capa, sumário, prefácio. Tudo aquilo que um bom livro que se prese apresenta. Não sabia por onde começar, porque normalmente usava meus personagens para traduzir coisas que haviam guardadas dentro de mim. Escrever sobre alguém que existia de verdade soava como se estivesse fazendo uma imagem estática, como uma fotografia, livre de sentimentos e segredos, bidimensional e rasa.

Fui para casa naquele dia sem definir quem escolheria. Não que meus pais não pudessem relatar fatos interessantes de suas juventudes, mas definitivamente minha família não costumava manter demonstrações de afetividade suficientemente fortes para que estabelecêssemos um diálogo neste nível. Não havia abraços, beijos ou declarações de afetividade. Éramos uma família sem a intimidade do carinho. O menino de dezesseis anos não questionava isso, porque crescera nesse ambiente, que para si era perfeitamente natural. Foi então que me veio a ideia de entrevistar a única pessoa da minha família com quem, vez por outra, sentava para ouvir histórias que poderiam ser bons capítulos de um livro biográfico. Alguém cuja vida ainda representava alguns mistérios e, talvez, segredos.

Meu avô, Januário Araújo, era viúvo e tinha oitenta anos. Apesar da idade, era dono de uma saúde invejável e adorava contar histórias de quando morava na região da campanha, no interior do município de Alegrete. Contava sobre caçadas e pescarias, sobre uma época e um lugar onde as leis da cidade não se aplicavam, como nos filmes de faroeste, com cavalos, armas, homens corajosos e horizontes tão grandes, que o menino da cidade sequer conseguia imaginar. Mas as histórias que mais faziam seus olhos brilhar eram aquelas que narravam suas grandes paixões: abelhas e mel. Não cansava de repetir casos onde passava muito trabalho procurando enxames de abelhas silvestres para pegar seu doce tesouro. Pois essa pessoa, tão íntima quanto suas histórias me permitiam ser, seria o personagem de meu projeto de Língua Portuguesa. Havia sentimentos e segredos o suficiente ali para construir uma boa biografia. E assim, durante três finais de semana seguidos, ia para Sapucaia do Sul, onde ele morava, e ficava com ele, anotando suas histórias e fazendo tantas perguntas quanto fossem necessárias para construir uma boa narrativa. Em suas histórias, um fato me impressionou muito. Ele não chegara a conhecer seu avô, e seu pai era apenas uma vaga lembrança de infância.

Na quarta semana do projeto eu deveria transcrever meus rascunhos para o livro definitivo. Como minha letra era muito feia, pensei em um toque de ousadia e pedi emprestado para um vizinho, que era professor, sua máquina de escrever. O curioso sobre este fato é que eu nunca havia usado uma máquina destas. O vizinho me deu algumas dicas de como usar o equipamento, que eu levei para casa. Passei a semana inteira datilografando o livro. Cortei folhas de papel A4 ao meio, para que meu projeto tivesse as dimensões próximas a de um pequeno livro. Meu texto era tão simplório quanto o texto de qualquer jovem de dezesseis anos, com muitos erros de grafia e gramaticais. No entanto, havia tanto sentimento no que estava escrito, que os erros talvez passassem desapercebidos para alguém que se dedicasse a apreciar mais seu conteúdo que sua forma. Escolhi um retrato em preto e branco do meu avô com 26 anos para colar na capa e mais algumas fotos antigas que peguei escondido em uma caixa na sua casa, para ilustrar o capítulo final. Mas ainda faltava alguma coisa. Algo que fizesse meu livro mais que uma simples coleção de causos, relatos e fotos antigas.

Meu avô não havia conhecido seu próprio avô. Para o menino de dezesseis anos, tão ligado à presença do pai de seu pai, isso era algo incompreensível. Devia haver algum mistério nessa história. Soube algo vago em torno de um homem casado que havia engravidado uma mulher que não era sua esposa, e cujo pai, um político de Rosário do Sul, que também era um poderoso estancieiro, “resolvera” a questão enviando a grávida e seu pequeno filho para um lugar distante, para uma “nova família”. Meu avô sabia apenas o nome deste estancieiro: Coronel Sabino Araújo, seu avô.

O trabalho era para ser entregue na segunda-feira. No sábado fui para a Biblioteca Pública Municipal de São Leopoldo e comecei a procurar livros que falassem da história das cidades do Rio Grande do Sul. Não existia internet em 1991, e as respostas só podiam ser encontras em livros e bibliotecas. Encontrei uma coleção de enormes publicações, muito antigas, chamada Enciclopédia dos Municípios do Rio Grande do Sul, e lá localizei o que procurava: registros históricos sobre o município de Rosário do Sul. Entre eles, o retrato de um elegante senhor de terno e gravata, usando um chapéu de abas curtas. Sob a fotografia a legenda “O abastado estancieiro e chefe político coronel Sabino Araújo”. Na sequência, dois parágrafos retratavam a importância política e econômica do homem, no restante do capítulo, detalhes sobre suas estâncias. Não havia dúvidas. Só poderia ser ele! Fiz fotocópias da imagem e dos parágrafos descritivos. Mesmo com meu livro já finalizado, colei mais duas meias folhas no final e encerrei minha obra com uma apresentação sobre o avô que Januário Araújo nunca havia conhecido. Inseri à caneta o “novo capítulo” no sumário.

Na segunda-feira levei o livro e entreguei para professora Regina Ungaretti. Não lembro quanto tempo depois exatamente ela me devolveu. Tampouco lembro a nota que o projeto recebeu. E para ser sincero, isto já não me importava mais. Aquele livro fazia parte de mim, como um pedaço da minha memória que havia se materializado.

Pouco mais de um mês depois que recebi o livro avaliado pela professora, meu avô estava em minha casa em São Leopoldo, em um jantar onde comemorávamos o aniversário do meu pai. Esperei algumas pessoas irem embora e, quando estávamos apenas meu avô e eu sentados conversando, mostrei-lhe o livro. Curioso, folhou as páginas, sem se ater muito ao texto, mas com um sorriso orgulhoso de canto de boca. Ao chegar nas páginas finais, vi que sua expressão ficou séria, o cenho franzido, o olhar fixo. Ergueu os olhos para mim, sorriu e disse “É esse mesmo.” Sem dizer mais nenhuma palavra, ainda ficou alguns minutos olhando a foto, as vezes sorrindo, as vezes sério. Percebi que seus olhos ficaram molhados. Talvez por causa da fumaça que vinha da churrasqueira. Talvez por algum outro motivo. Não sei. Fechei os olhos para ficar apreciando aquele momento sem ver, apenas sentir na pele, na memória.

Ao abrir os olhos, o livro estava nas minhas mãos novamente. Separei uma pastinha plástica e o guardei, junto de alguns recortes de jornais antigos e algumas outras memórias que estavam na gaveta. Talvez um dia o utilize em algum trabalho da faculdade, ou apenas como desculpa para reviver boas lembranças, que andavam esquecidas. Até lá, espero que o livro continue guardando um pouco do passado do meu avô, e muito de minhas memórias.




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Em 2008 o livro ganhou as mãos, o olhar e a sensibilidade de poeta Fernanda Irala. Deste encontro nasceu o poema "Os Olhos do meu Avô", que participou do 9º Seival da Poesia Gaúcha, de São Lourenço do Sul. Foi ao palco para sua apresentação em 26 de junho daquele ano, com o acompanhamento musical de Geraldo Trindade e interpretado por mim.





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Comentários

  1. Um dia esse Livro, que é poesia, vida e amor chegou nas minha mãos. A Singeleza era o que fazia dele uma jóia, uma preciosidade, um portal na história de uma família. Por isso o meu respeito e cuidado por cada uma das palavras, fotos, folhas e memórias. E me apoderar e todas as sensações que faz desse livro uma Jóia me causou uma imersão afetiva numa estória que não era minha, mas da qual como se fosse "testemunha ocular" eu estava lá dentro. Fui levada pelo amor de um neto a um avô e de um avô por um neto, a ordem pouco importa. Mas estamos falando de um início e um fim que nunca sabemos de verdade onde inicia...sabemos só que nunca acaba. Um avô é nossa história viva, o baluarte da nossa existência. Um neto é a certeza da infinitude é a certeza de habitar pra sempre no coração dos nossos. Eu pessoalmente, sou imensamente grata ao Leandro por ter permitido que tenha estado em algum cantinho dessa estória, imersa em poesia vida e amor.

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    1. Fernanda, muito obrigado pelo carinho... e por ter feito parte desta memória com tanta sensibilidade. Um grande beijo!

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  2. Leandro, Viviane Araujo Gonçalves aqui! Sou bisneta do Cor. Sabino Araújo. Emocionei. Não precisa ler o seu livro para ter a certeza que é uma relíquia, que nos remete ao passado, com boas lembranças e sensação de sabermos de onde viemos. Parabéns. Eu e meus irmãos (Lourival e Paulo), fizemos a árvore genealógica familiar, e, graças à contribuição de uma historiadora, avançamos muito nos registros dos nossos ascendentes da linhagem "Araujo". Se tiveres interesse, posso te enviar. Abs da parente, Viviane

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    1. Oi, Viviane. Tudo bem, parente?
      Muito feliz com teu depoimento. É uma história de família, pessoal... mas acho que pode dizer muito, sobre muitas coisas. Por isso resolvi compartilhar. Fiz minha árvore também, então devemos ter muitos pontos em comum, principalmente nas referências antigas. Um abração e obrigado pelo carinho!

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  3. Seguindo.... outra pessoa que nos ajudou e continua nos apoiando é João Alberto Andrade, inclusive foi ele que nos colocou em contato com a historiadora.

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    1. Obrigado! Vamos procurar este amigo... quem sabe não temos algumas coisas legais para trocar? Abração!

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