A MENINA QUE PODIA VOAR
Leandro de Araújo
Como fazia todos os dias, Júlia acordou às seis
e meia para se arrumar e ir à escola. A música do despertador do celular de sua
mãe, no quarto ao lado, a alertou. Abriu os olhos e ficou olhando para o teto,
esperando a mamãe entrar no quarto e lhe dar o beijo de bom dia.
Tinha oito anos e frequentava o segundo ano da
escola que ficava próxima a sua casa. Um pouco mais baixa que a maioria das
meninas de sua idade, possuía um sorriso aberto e fácil, que junto de seus
olhos castanho-esverdeados e o nariz arredondado, formavam um belo e redondo
rosto de menina sapeca. Cabelos compridos e castanhos como os de sua mãe. Os
olhos indiáticos havia herdado do pai, do qual não lembrava, pois fora embora
quando ainda era um bebê.
Já havia passado mais tempo que o habitual e
nada de beijo de bom dia. Ou de sua mãe. A música do telefone cessara e agora
um silêncio perturbador preenchia todos os espaços do pequeno quarto. Nem os
passarinhos, que a esta hora já deveriam estar em uma alegre e barulhenta algazarra,
pareciam ter despertado naquela manhã de segunda-feira.
Aquele silêncio estranho e a incomum ausência
de sua mãe a deixaram nervosa. Mesmo assim Júlia fecha os olhos para descansar
mais um pouco, imaginando que a mamãe estaria fazendo o mesmo, ficando mais uns
minutinhos na cama. Fazia de vez em quando. Júlia percebia que a mãe andava muito
cansada. Acordava tão cedo todos os dias para prepará-la e leva-la à escola. Depois,
sem mesmo ter tempo para tomar um café decente, ia direto para o trabalho.
Raramente descansava. A menina tinha que fazer um esforço enorme para conseguir
ter seus pedidos atendidos e brincar um pouco com a mamãe. Normalmente saiam da
escola no final da tarde, faziam alguma coisa para comer, tomavam um banho e
logo deitavam para dormir.
Depois de alguns minutos aguardando sem que
nada acontecesse, Júlia decide levantar. Precisava saber o que estava
acontecendo. Será que sua mãe dormiu novamente?
Estica-se toda, numa preguiça gostosa e, quando
tenta sentar na cama, percebe que algo muito estranho estava acontecendo.
Júlia
não estava na cama. Estava ao lado dela. Não no chão, como seria o óbvio.
Estava sentada no ar, flutuando como um balão de gás. Sentiu seu coração
acelerar, sem entender direito o que estava acontecendo. Sua pulsação fazia
tremer cada unicórnio azul de seu pijama rosa e sua respiração poderia ser
ouvida do lado de fora da janela do quarto. Chamou por sua mãe uma, duas, dez
vezes! Não houve resposta.
Era impossível tocar o chão. A menina pedalava
no ar como se estivesse boiando em uma piscina imaginária, cujo fundo não podia
tocar. Quanto mais se esforçava para tocar o piso do quarto, mais voltas dava
no ar.
A claridade que entrava pelas frestas da janela
permitia perceber que o sol já estava brilhando alto. Por quanto tempo estava
ali flutuando? Não sabia responder. Tentou erguer-se, instintivamente procurando
calçar os chinelos que repousavam ao lado da cama, mas foi inútil. Por mais que
se esforçasse não conseguia baixar, ficando no máximo na mesma altura que seu
colchão, cerca de meio metro acima do chão. Respirou fundo e olhou para a
porta, desejando muito passar por ela e deixar aquele cômodo, despertar daquele
pesadelo. Então, percebe que seu corpo se movia suavemente em direção à saída
do quarto.
Transpõe lentamente a porta, sempre no ar. Atravessa
a peça maior da casa, que fazia vezes de cozinha e sala de estar, até chegar à
porta do quarto de sua mãe. Sem deixar de flutuar por um momento sequer, sua
mãozinha pequena dá leves batidinhas. Algo a fazia sentir que ninguém
responderia, e isto se confirmou. Precisou se equilibrar no ar e se curvar um
pouco para pegar a maçaneta. Ao entrar no cômodo, percebe que está vazio. Tudo
exatamente normal como deveria estar, apenas sem a presença de sua mãe. As
roupas de cama remexidas, o telefone sobre o criado mudo ligado ao carregador e
a roupa do trabalho da mamãe dobrada em cima de uma cadeira.
Júlia queria gritar. Sair de casa e mostrar
para todo mundo o que era capaz de fazer. Caraca, estava voando! Isso deveria
ser algo muito legal! Mas não da forma que estava acontecendo. Sentiu uma
solidão que nunca havia sentido. E esta mistura de sentimentos, tão poderosa e
completamente só, estava a deixando maluca.
Olhou para a porta da rua e desejou alcançá-la.
Imediatamente começou a flutuar na sua direção, onde permaneceu em silêncio por
alguns minutos, com uma mão segurando a chave e a outra espalmada contra o
vidro. Sem saber por quanto tempo ficou nesta posição, girou a chave e deixou o
ar fresco da manhã tocar seu rosto, balançar seus cabelos.
Antes mesmo de desejar sair, já estava
flutuando até a rua. Apenas uma brisa suave parecia trazer certo movimento
aquele quadro. O bairro suburbano em que morava, com suas casas baixas e
simples, muitas árvores nos jardins e canteiros centrais, estava parecendo uma
cidade fantasma. Tudo exatamente como deveria ser, apenas estranhamente vazio
de pessoas, animais, carros.
Flutuou suavemente até a esquina mais próxima e
olhou para os dois lados, procurando alguém que pudesse ajudá-la a tentar
entender o que estava acontecendo. Não havia ninguém. Júlia, se conseguisse,
sentaria no chão e choraria, mas sequer conseguia tocar as pontas dos dedos no
solo. E para complicar tudo, sentia já o estômago doer de fome.
Preciso
comer alguma coisa, pensou. E antes mesmo
de lamentar o fato de sua mãe não estar ali para preparar o lanche, se deu
conta de que, como não havia ninguém em lugar algum, poderia fazer o que
quisesse. Qualquer coisa! Não seria repreendida ou cobrada. Nada de castigos ou
ralhos, apenas desejar e fazer. E voando, o que seria muito mais divertido.
Voou até uma padaria que ficava próxima à sua
casa. Era uma loja pequena, que atendia basicamente apenas as pessoas daquela
vizinhança. Havia apenas um balcão de atendimento e algumas prateleiras com
biscoitos e pães. Alguns chocolates e salgadinhos em uma gôndola próxima ao
caixa e um balcão refrigerado com refrigerantes e achocolatados. Entrou voando
pela porta e atacou com fúria nervosa todos os chocolates e salgadinhos que
conseguiu alcançar na parte de cima da gôndola. Comeu o máximo que pode,
praticamente empurrando goela abaixo com ajuda de algumas caixinhas de
achocolatado.
Durante todo o dia, Júlia foi dona de seu
mundo. Esteve no maior número de lugares que conseguiu e aproveitou ao máximo.
Voou até cada playground que conhecia e brincou em todos os brinquedos que era
possível. E isso tudo sem ter que esperar a vez ou dividir com ninguém. Conseguiu
ficar na parte de cima da gangorra, sem que nenhuma pessoa precisasse ficar
fazendo peso no outro lado. No balanço, quem balançava era ela, pois não
precisava ficar sentada no assento, apenas pairava sobre ele. No escorrega, mesmo
que só conseguisse escorregar até a metade, tudo bem, estava se divertindo da
mesma maneira. Pela primeira vez conseguiu subir na parte mais alta do
trepa-trepa sem medo, sabendo que se caísse não iria se machucar, uma vez que não
tinha como chegar ao chão.
Em seguida voou até o centro da cidade, onde
entrou em todas as lojas que gostava e provou todas as roupas que podia. Trocou
seu pijama rosa por uma blusinha branca estampada na frente com um unicórnio
gigante e sorridente, uma linda saia rodada rosa pink e sandálias coloridas. Na
cabeça, uma tiara brilhante, com orelhinhas e um chifre de unicórnio bem no
centro.
Assim seguiu durante todo o dia. Quando tinha
fome, entreva em uma sorveteria ou confeitaria e se fartava. Se ficasse
cansada, deitava no ar, na sombra de uma árvore, e ficava assim, flutuando e
olhando para o céu. A única coisa que não passava era a sensação desconfortável
de estar sozinha. Na medida que o dia ia passando e o final da tarde ia
chegando, Júlia sentia com mais intensidade a falta de outras pessoas com quem
pudesse compartilhar sua incrível habilidade. Ficou imaginando a cara de suas
colegas de escola se pudessem vê-la voando! E seus primos! Seria demais! Mas de
quem mais sentia falta mesmo, era de sua mãe, sua melhor amiga.
À medida que a noite foi se aproximando, a
pequena menina voadora sentiu uma falta enorme das coisas em seu quarto, do
carinho e da comidinha feitos por sua mãe. Experimentou uma saudade tão grande
quanto dolorosa. Foi neste momento que seu corpo começou a se deslocar
suavemente no ar em direção à sua casa, deixando apenas o rastro de suas
lágrimas que iam ficando pelo caminho, suspensos no ar como pequenas estrelas.
Já era noite quando chegou à porta de sua casa.
Já não sentia alegria em poder flutuar livremente por aí, apenas solidão.
Deitada de costas, com os braços cruzados sob a nuca, nem precisou olhar para
onde estava indo. Reconheceu seu quarto apenas pelo calor e segurança que ele
lhe transmitia. Estava tudo ali do mesmo jeito. A cama pequena, a escrivaninha
com seu material escolar, o roupeiro, baú de brinquedos. Uma única janela para
rua, coberta por uma cortina onde havia a enorme estampa de uma menina
brincando com seu cachorro. Tudo que Júlia mais amava. Contudo, acompanhados
agora da sensação de vazio e tristeza, de desamparo e medo. Permaneceu deitada
no ar, no meio do quarto, olhando para o teto e pensando em tudo que acontecera
naquele dia.
A pequena menina adormeceu assim. Mesmo com os
olhos fechados, seu sono era cortado por profundos suspiros.
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Às seis e meia, num sobressalto, Júlia se
acorda ao ouvir o telefone de sua mãe despertar no quarto ao lado. Antes mesmo
da música cessar, a porta se abre e ela vê, mesmo na penumbra, sua mãe se
aproximando. Ela lhe dá bom dia, acompanhado de um estalado beijo na testa. Vamos acordar, sua preguiçosa? Está na hora
de ir à escola. Mamãe sai do quarto para preparar seu uniforme e, com o
coração batendo acelerado, a menina sente contra seu corpinho a acolhedora
sensação do colchão. Rapidamente joga as pernas para fora da cama e sente seus
pés caindo sobre os chinelos, que repousavam aguardando mais uma manhã.
Só então percebeu que tudo não passara de um
sonho maluco. Ou, quem sabe, nem tão maluco assim. O que aconteceu naquele
estranho mundo onde ela podia voar, fazer coisas incríveis, como se divertir em
um parque ou vestir roupas legais e comer sorvete, era o que fazia sempre que
possível nos raros momentos em que estava junto de sua mãe.
Júlia corre para fora do quarto e abraça com
força sua mãe, que estava na cozinha preparando seu lanche. Grossas lágrimas
escorriam de seus olhos e molhavam o enorme sorriso que parecia não se desfazer
por nada neste mundo.
Mamãe não entendeu o que estava acontecendo,
mas ao perceber que algo muito importante estava se passando com Júlia,
retribuiu seu abraço. Lágrimas vieram aos seus olhos também.
-
Obrigado, mamãe.
- Mas
pelo que, minha filha?
- Por estar sempre perto de mim, e me permitir
voar............................................................
Modelo das fotos: Maria Júlia "Juju"
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