CONTO 009 - A menina que podia voar


A MENINA QUE PODIA VOAR
Leandro de Araújo

Como fazia todos os dias, Júlia acordou às seis e meia para se arrumar e ir à escola. A música do despertador do celular de sua mãe, no quarto ao lado, a alertou. Abriu os olhos e ficou olhando para o teto, esperando a mamãe entrar no quarto e lhe dar o beijo de bom dia.
Tinha oito anos e frequentava o segundo ano da escola que ficava próxima a sua casa. Um pouco mais baixa que a maioria das meninas de sua idade, possuía um sorriso aberto e fácil, que junto de seus olhos castanho-esverdeados e o nariz arredondado, formavam um belo e redondo rosto de menina sapeca. Cabelos compridos e castanhos como os de sua mãe. Os olhos indiáticos havia herdado do pai, do qual não lembrava, pois fora embora quando ainda era um bebê.
Já havia passado mais tempo que o habitual e nada de beijo de bom dia. Ou de sua mãe. A música do telefone cessara e agora um silêncio perturbador preenchia todos os espaços do pequeno quarto. Nem os passarinhos, que a esta hora já deveriam estar em uma alegre e barulhenta algazarra, pareciam ter despertado naquela manhã de segunda-feira.
Aquele silêncio estranho e a incomum ausência de sua mãe a deixaram nervosa. Mesmo assim Júlia fecha os olhos para descansar mais um pouco, imaginando que a mamãe estaria fazendo o mesmo, ficando mais uns minutinhos na cama. Fazia de vez em quando. Júlia percebia que a mãe andava muito cansada. Acordava tão cedo todos os dias para prepará-la e leva-la à escola. Depois, sem mesmo ter tempo para tomar um café decente, ia direto para o trabalho. Raramente descansava. A menina tinha que fazer um esforço enorme para conseguir ter seus pedidos atendidos e brincar um pouco com a mamãe. Normalmente saiam da escola no final da tarde, faziam alguma coisa para comer, tomavam um banho e logo deitavam para dormir.
Depois de alguns minutos aguardando sem que nada acontecesse, Júlia decide levantar. Precisava saber o que estava acontecendo. Será que sua mãe dormiu novamente?
Estica-se toda, numa preguiça gostosa e, quando tenta sentar na cama, percebe que algo muito estranho estava acontecendo.
 Júlia não estava na cama. Estava ao lado dela. Não no chão, como seria o óbvio. Estava sentada no ar, flutuando como um balão de gás. Sentiu seu coração acelerar, sem entender direito o que estava acontecendo. Sua pulsação fazia tremer cada unicórnio azul de seu pijama rosa e sua respiração poderia ser ouvida do lado de fora da janela do quarto. Chamou por sua mãe uma, duas, dez vezes! Não houve resposta.
Era impossível tocar o chão. A menina pedalava no ar como se estivesse boiando em uma piscina imaginária, cujo fundo não podia tocar. Quanto mais se esforçava para tocar o piso do quarto, mais voltas dava no ar.
A claridade que entrava pelas frestas da janela permitia perceber que o sol já estava brilhando alto. Por quanto tempo estava ali flutuando? Não sabia responder. Tentou erguer-se, instintivamente procurando calçar os chinelos que repousavam ao lado da cama, mas foi inútil. Por mais que se esforçasse não conseguia baixar, ficando no máximo na mesma altura que seu colchão, cerca de meio metro acima do chão. Respirou fundo e olhou para a porta, desejando muito passar por ela e deixar aquele cômodo, despertar daquele pesadelo. Então, percebe que seu corpo se movia suavemente em direção à saída do quarto.
Transpõe lentamente a porta, sempre no ar. Atravessa a peça maior da casa, que fazia vezes de cozinha e sala de estar, até chegar à porta do quarto de sua mãe. Sem deixar de flutuar por um momento sequer, sua mãozinha pequena dá leves batidinhas. Algo a fazia sentir que ninguém responderia, e isto se confirmou. Precisou se equilibrar no ar e se curvar um pouco para pegar a maçaneta. Ao entrar no cômodo, percebe que está vazio. Tudo exatamente normal como deveria estar, apenas sem a presença de sua mãe. As roupas de cama remexidas, o telefone sobre o criado mudo ligado ao carregador e a roupa do trabalho da mamãe dobrada em cima de uma cadeira.
Júlia queria gritar. Sair de casa e mostrar para todo mundo o que era capaz de fazer. Caraca, estava voando! Isso deveria ser algo muito legal! Mas não da forma que estava acontecendo. Sentiu uma solidão que nunca havia sentido. E esta mistura de sentimentos, tão poderosa e completamente só, estava a deixando maluca.
Olhou para a porta da rua e desejou alcançá-la. Imediatamente começou a flutuar na sua direção, onde permaneceu em silêncio por alguns minutos, com uma mão segurando a chave e a outra espalmada contra o vidro. Sem saber por quanto tempo ficou nesta posição, girou a chave e deixou o ar fresco da manhã tocar seu rosto, balançar seus cabelos.
Antes mesmo de desejar sair, já estava flutuando até a rua. Apenas uma brisa suave parecia trazer certo movimento aquele quadro. O bairro suburbano em que morava, com suas casas baixas e simples, muitas árvores nos jardins e canteiros centrais, estava parecendo uma cidade fantasma. Tudo exatamente como deveria ser, apenas estranhamente vazio de pessoas, animais, carros.
Flutuou suavemente até a esquina mais próxima e olhou para os dois lados, procurando alguém que pudesse ajudá-la a tentar entender o que estava acontecendo. Não havia ninguém. Júlia, se conseguisse, sentaria no chão e choraria, mas sequer conseguia tocar as pontas dos dedos no solo. E para complicar tudo, sentia já o estômago doer de fome.
Preciso comer alguma coisa, pensou. E antes mesmo de lamentar o fato de sua mãe não estar ali para preparar o lanche, se deu conta de que, como não havia ninguém em lugar algum, poderia fazer o que quisesse. Qualquer coisa! Não seria repreendida ou cobrada. Nada de castigos ou ralhos, apenas desejar e fazer. E voando, o que seria muito mais divertido.
Voou até uma padaria que ficava próxima à sua casa. Era uma loja pequena, que atendia basicamente apenas as pessoas daquela vizinhança. Havia apenas um balcão de atendimento e algumas prateleiras com biscoitos e pães. Alguns chocolates e salgadinhos em uma gôndola próxima ao caixa e um balcão refrigerado com refrigerantes e achocolatados. Entrou voando pela porta e atacou com fúria nervosa todos os chocolates e salgadinhos que conseguiu alcançar na parte de cima da gôndola. Comeu o máximo que pode, praticamente empurrando goela abaixo com ajuda de algumas caixinhas de achocolatado.
Durante todo o dia, Júlia foi dona de seu mundo. Esteve no maior número de lugares que conseguiu e aproveitou ao máximo. Voou até cada playground que conhecia e brincou em todos os brinquedos que era possível. E isso tudo sem ter que esperar a vez ou dividir com ninguém. Conseguiu ficar na parte de cima da gangorra, sem que nenhuma pessoa precisasse ficar fazendo peso no outro lado. No balanço, quem balançava era ela, pois não precisava ficar sentada no assento, apenas pairava sobre ele. No escorrega, mesmo que só conseguisse escorregar até a metade, tudo bem, estava se divertindo da mesma maneira. Pela primeira vez conseguiu subir na parte mais alta do trepa-trepa sem medo, sabendo que se caísse não iria se machucar, uma vez que não tinha como chegar ao chão.
Em seguida voou até o centro da cidade, onde entrou em todas as lojas que gostava e provou todas as roupas que podia. Trocou seu pijama rosa por uma blusinha branca estampada na frente com um unicórnio gigante e sorridente, uma linda saia rodada rosa pink e sandálias coloridas. Na cabeça, uma tiara brilhante, com orelhinhas e um chifre de unicórnio bem no centro.
Assim seguiu durante todo o dia. Quando tinha fome, entreva em uma sorveteria ou confeitaria e se fartava. Se ficasse cansada, deitava no ar, na sombra de uma árvore, e ficava assim, flutuando e olhando para o céu. A única coisa que não passava era a sensação desconfortável de estar sozinha. Na medida que o dia ia passando e o final da tarde ia chegando, Júlia sentia com mais intensidade a falta de outras pessoas com quem pudesse compartilhar sua incrível habilidade. Ficou imaginando a cara de suas colegas de escola se pudessem vê-la voando! E seus primos! Seria demais! Mas de quem mais sentia falta mesmo, era de sua mãe, sua melhor amiga.
À medida que a noite foi se aproximando, a pequena menina voadora sentiu uma falta enorme das coisas em seu quarto, do carinho e da comidinha feitos por sua mãe. Experimentou uma saudade tão grande quanto dolorosa. Foi neste momento que seu corpo começou a se deslocar suavemente no ar em direção à sua casa, deixando apenas o rastro de suas lágrimas que iam ficando pelo caminho, suspensos no ar como pequenas estrelas.
Já era noite quando chegou à porta de sua casa. Já não sentia alegria em poder flutuar livremente por aí, apenas solidão. Deitada de costas, com os braços cruzados sob a nuca, nem precisou olhar para onde estava indo. Reconheceu seu quarto apenas pelo calor e segurança que ele lhe transmitia. Estava tudo ali do mesmo jeito. A cama pequena, a escrivaninha com seu material escolar, o roupeiro, baú de brinquedos. Uma única janela para rua, coberta por uma cortina onde havia a enorme estampa de uma menina brincando com seu cachorro. Tudo que Júlia mais amava. Contudo, acompanhados agora da sensação de vazio e tristeza, de desamparo e medo. Permaneceu deitada no ar, no meio do quarto, olhando para o teto e pensando em tudo que acontecera naquele dia.
A pequena menina adormeceu assim. Mesmo com os olhos fechados, seu sono era cortado por profundos suspiros.
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Às seis e meia, num sobressalto, Júlia se acorda ao ouvir o telefone de sua mãe despertar no quarto ao lado. Antes mesmo da música cessar, a porta se abre e ela vê, mesmo na penumbra, sua mãe se aproximando. Ela lhe dá bom dia, acompanhado de um estalado beijo na testa. Vamos acordar, sua preguiçosa? Está na hora de ir à escola. Mamãe sai do quarto para preparar seu uniforme e, com o coração batendo acelerado, a menina sente contra seu corpinho a acolhedora sensação do colchão. Rapidamente joga as pernas para fora da cama e sente seus pés caindo sobre os chinelos, que repousavam aguardando mais uma manhã.
Só então percebeu que tudo não passara de um sonho maluco. Ou, quem sabe, nem tão maluco assim. O que aconteceu naquele estranho mundo onde ela podia voar, fazer coisas incríveis, como se divertir em um parque ou vestir roupas legais e comer sorvete, era o que fazia sempre que possível nos raros momentos em que estava junto de sua mãe.
Júlia corre para fora do quarto e abraça com força sua mãe, que estava na cozinha preparando seu lanche. Grossas lágrimas escorriam de seus olhos e molhavam o enorme sorriso que parecia não se desfazer por nada neste mundo.
Mamãe não entendeu o que estava acontecendo, mas ao perceber que algo muito importante estava se passando com Júlia, retribuiu seu abraço. Lágrimas vieram aos seus olhos também.
- Obrigado, mamãe.
- Mas pelo que, minha filha?
- Por estar sempre perto de mim, e me permitir voar.


















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Modelo das fotos: Maria Júlia "Juju"


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