CONTO 004 - O Cavaleiro e o Espelho

Belo era um cavaleiro. Medieval.

Como todo cavaleiro tinha a missão de proteger o reino e suas instituições mais importantes: a família, a igreja e o rei. Não necessariamente nesta ordem. Costumava sair à rua com uma espada à cinta, para que fosse reconhecido publicamente. Se divertia vendo o temor que causava naqueles que não tiveram a honra de ser reconhecidos pelo nobre título. Sentia orgulho da importância de seu trabalho, afinal de contas, poucas pessoas no reino podiam ostentar a imponência de uma espada de cavaleiro e ser respeitado como tal.

Vaidoso, Belo também se considerava um homem muito bonito. Com sua postura sempre elegante, jamais deixaria de fazer reverência às frágeis donzelas do reino. Afirmava que, enquanto estivesse por perto, princesa alguma precisava se preocupar malfeitores ou dragões. A força de sua arma seria suficiente para que elas pudessem continuar tranquilamente vivendo suas vidas tradicionais, dedicando seu tempo àquilo que faziam de melhor, serem donzelas. Andava por entre as casas do reino sentindo-se muito bem com o medo que sua enorme espada causava nas pessoas. Não temam, frágeis donzelas!

Num certo dia, Belo desperta de um sono pesado, fruto da ressaca de uma noite regada a bebidas e donzelas. Um prêmio justo e merecido por sua condição de cavaleiro. Ergue-se de sua cama e, diferente do que fazia todas as manhãs, ao invés de pegar sua espada e partir em busca de novas aventuras, procura um espelho para ver se em seu belo rosto havia sinais da animada noite que tivera. E então acontece algo terrível!

Ao se olhar no espelho, em vez dos dentes brancos e parelhos, pontiagudas presas amareladas. As madeixas loiras e abundantes deram lugar a pelos desgrenhados e sujos. A máscula barba bem aparada desapareceu, dando lugar a algo que parecia escamas. No lugar dos nórdicos olhos azuis, olhos vermelhos de ódio. Um verdadeiro monstro!

Belo tomou um grande susto quando viu seu reflexo. Em seguida riu, imaginando tratar-se de alguma brincadeira de seus amigos cavaleiros. Tentou arrancar a possível máscara e, quanto mais tentava esconder sua feiura, mais ela se revelava. Agora, por baixo das escamas de sua pele, começavam a surgir chifres e seu nariz, antes voluptuoso, crescia e deformava assustadoramente. Aterrorizado, tomado de uma ira irracional, pegou sua espada e, sem qualquer dúvida, espatifou o espelho. O mesmo devia estar encantado, fruto da vingança de alguma dessas tantas velhas bruxas, as quais muitas ele passou a vida inteira caçando e queimando em fogueiras.

Desesperado e com medo de ser visto naquele estado pelas pessoas do reino, vestiu um elmo que escondia totalmente sua feiura, pegou sua temida espada, e saiu pelas ruas do vilarejo a procura de um espelho que estivesse livre do encantamento, para poder-se mirar lindo e sedutor, como sempre fora. Mas não encontra. Cada espelho encontrado pelo caminho reflete ainda mais características monstruosas. Olheiras fundas e negras, gosmas nojentas escorrendo de suas narinas, uma cauda pontiaguda sem pelos. A raiva só aumentava e mais espelhos iam sendo quebrados. Sua espada nunca havia trabalhado tanto!

Seguia sua cruzada destroçando todo e qualquer objeto que pudesse refletir sua imagem. Já não apenas se limitava a pôr fim em seu próprio reflexo medonho, como prometia aos berros queimar todas as bruxas que ainda estavam vivas.

Cumpriu sua promessa sangrenta. Primeiramente, caçou as bruxas que declaravam publicamente sua condição encantada. Em seguida, aquelas que negavam, mas que aparentavam muito pertencer a alguma ordem mágica. Por fim, tratou de queimar aquelas que sequer pareciam bruxas, mas que pelo fato de protestarem pedindo o fim ao bruxicídio, mereciam o fogo também.

Como não havia mais espelhos ou bruxas no reino, Belo, o cavaleiro, sentiu calmamente sua ira se abrandar. Ora! Obviamente sua imagem voltaria à beleza que sempre tivera. Então, depois de acabar com a última bruxa e o último espelho do reino, seguiu a trilha que levava de volta à aldeia.

No meio do caminho sentiu sede e resolveu beber água em um riacho. Chegando à margem de um pequeno rio, tirou seu elmo, soltou a espada da cinta e se abaixou para alcançar a água em um remanso. Foi então que estendeu as mãos em concha e olhou para água.

O terror tomou conta de seu coração! Na água do riacho, entrecortada por pequenos peixes que nadavam de um lado para outro, um reflexo assustador mostrava que o monstro continuava lá. E nada que o cavaleiro fizesse mudava isso. Por mais que batesse com sua espada na água, assim que ela acalmava, voltava a revelar a criatura monstruosa. Já cansado de tanto golpear seu reflexo sem sucesso, começou a perder as forças e caiu, extenuado.

Respirava de forma ofegante, completamente confuso. Em sua cabeça agora uma avalanche de dúvidas e uma única certeza. Por quê? Desde quando? Uma tristeza enorme toma conta de seu ser. Está ferido em sua alma, com medo e sem saber o que fazer.

Recupera o fôlego, volta a sentar-se na beira do riacho e novamente olha seu reflexo. Uma sombra paira sobre sua consciência quando percebe que talvez o monstro sempre estivera ali. Que o olhar de medo das pessoas jamais teria sido por causa de sua grande e temida espada, mas pela sua aparência medonha. Belo entendeu, então, que de nada adiantava quebrar espelhos ou caçar bruxas, enquanto ele mesmo não reconhecesse o que representava para todos que estavam próximos. Muitas vezes os monstros que vemos são apenas reflexos daquilo que está em nós, mas que a vaidade, ou o medo de não sermos perfeitos, acaba por esconder. Os espelhos que quebramos jamais voltam a refletir, assim como as bruxas que queimamos jamais voltarão a fazer sua mágica.

Jogou sua espada na água e a viu afundar rapidamente, até desaparecer no fundo. O mesmo fez com seu elmo. Voltou a pegar a estrada em direção à aldeia. Agora entendendo que se aprendesse a reconhecer seu próprio aspecto monstruoso, talvez pudesse aprender a entender a importância das bruxas e a real utilidade dos espelhos.

Reflexão: Quantas vezes tu já criticaste ou mesmo estranhaste a atitude de alguma pessoa, sendo que tu mesmo já fizeste ou desejaste fazer o mesmo?






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Comentários

  1. Excelente reflexão. Cansamos de ver monstros por aí escondidos atrás de máscaras. Mas um dia as máscaras caem, e o que estava escondido se revela...

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