OPINIÃO 002 - Abelhas e Mel

Sempre achei que todas as pessoas têm o direito de serem felizes. Curiosamente, também acredito que uma fatia maior deste sentimento é regalada pela vida àqueles que tiveram a oportunidade de conviver, pelo menos durante parte de sua infância, ao lado de seus avós. Se a geografia não me deu oportunidade de conviver com os quatro, pelo menos dois deles me fizeram mais feliz.

O personagem de minhas histórias, apócrifas ou não, é meu avô paterno. Januário Araújo, Cungo para os mais íntimos. Curiosamente, a última imagem que tenho dele não é a do final de sua jornada, deitado em uma cama de hospital, os olhos lacrimejantes – ora, esta é outra história, quem sabe a deixemos para o final?... Lembro sempre do seu sorriso franco por baixo do bigode másculo, o olhar maroto de contador de histórias, a cabeleira vasta, mas branca como um algodão. Nascera em 1911 e mesmo a idade muito avançada não lhe havia tirado o brilho, a força de vontade e a alegria de viver.

Cresci à sua sombra, fui durante muitos anos uma semente que germinava e crescia admirando os galhos frondosos e as flores belas e simples que vô Cungo, qual um angico, distribuía fartamente em forma de “causos”, normalmente repassando experiências próprias. Esses fatos, cuja veracidade jamais ousei duvidar, foram os primeiros pilares da formação do meu caráter, minhas primeiras janelas abertas ao mundo, às pessoas, o que esperar e oferecer a elas.

De sua infância, pouco foi dito. Nasceu no município de Rosário do Sul, filho de uma senhora chamada Gumercina Saraiva e que foi criado longe de seu pai biológico, senhor Roberto Araújo, filho de um rico fazendeiro e político rosariense, o Coronel Sabino Araújo. Criado no interior do município de Alegrete por Dona Gumercina e um fazendeiro chamado Januário Fontoura. Sua infância foi difícil, como era difícil a vida de quem vive e trabalha em campo alheio. Ainda adolescente, havia deixado sua casa e foi viver sua vida.

Viveu e morreu pobre. Pobreza essa que jamais significou miséria, pois sempre trabalhou muito e, como ele mesmo dizia, “jamais falta pão na mesa de quem trabalha”.

E como trabalhou! Desde muito jovem, quando ainda vivia no interior de Alegrete, até por volta dos sessenta anos, quando veio à grande Porto Alegre acompanhar os filhos, foi pedreiro, marceneiro, artesão, peão caseiro, guasqueiro, peão de estância, alambrador, agricultor, pequarista, militar... uma vida cheia de “idas e idas”.

Pois grande parte das histórias que vocês vão ler aqui, trazem como personagem principal “um certo Vô Cungo”, a personificação do avô que viveu no interior. Caso paire sobre os leitores a dúvida sobre quais histórias foram realmente vividas por ele, e quais são fantasia, vou deixá-los descobrir sozinhos. Porque na fantasia do “Leandro menino” as histórias contadas pelo Vô Cungo se misturavam à imaginação. Quantas vezes me vi sozinho, “continuando” suas histórias, unindo-as ou então me inserindo como personagem.

É... Felizes das pessoas que tiveram um avô como herói. Eu tive essa felicidade. Ele que caçava, pescava, fugia de feras ou caçava tesouros. Lutava contra bandidos, salvava a prenda em perigo e saía assoviando... Inclusive, aí está uma grande fantasia, pois nunca ouvi meu avô assoviar. Mas quem dá bola pra isso?

Quanto o que falei lá no início, sobre as últimas vezes que o vi, foram quadros tristes que, apesar de ficarem grudados na memória, não superam todas as alegrias que vivi ao seu lado. Na última vez que o vi, no leito do hospital lutando contra o câncer, ele já não tinha mais forças para falar, apenas olhava para nós e para a janela, para fora. Não precisava dizer nada, nós já sabíamos. “Que calorão, né vô?” Num gesto muito seu ele ergueu as duas sobrancelhas e manteve-as assim por alguns segundos, assentindo. Tenho certeza que ele deve ter pensado “Hoje está bom para tirar uma abelha”, que era a forma com a qual ele se referia a “melar” ou tirar o mel de um enxame, sua grande paixão. Até hoje não consigo desassociar a imagem de uma abelha ou o cheiro de mel com a lembrança do meu velho.

Não tenho receio em retratar este momento final, muito menos tristeza, apenas saudade. E esta dor da perda de uma grande referência, quero transformar em histórias, para que outras pessoas possam conhecer e amar, com a mesma intensidade que amei, meu Vô Cungo. Tenho certeza que onde ele está hoje, está divertindo a todos que estão por perto, contando histórias e sendo herói de mais algum guri.

Leandro de Araújo
@Le_Aquecimento

Comentários

  1. Olá, Leandro!Visitei o teu blog e achei muito legal!Gostaria de saber mais sobre teus familiares! Sou de Rosário do Sul e temos o mesmo sobrenome!ANA

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