Subitamente,
um bando de pombos voava do alto de uma das árvores, passava por sobre as
cabeças das pessoas, como em uma dança sincronizada, e atacava ferozmente os
restos de um pão e fragmentos de salsichas que haviam caído no chão. Permaneciam
numa espécie de ritual em volta do banquete e depois saiam voando, finalizando
sua coreografia, e pousavam novamente nos galhos das árvores mais altas.
Observando
os pombos por entre as folhas de uma árvore, um pelincho -espécie de ave de
penas amareladas, cauda comprida e um penacho marrento sobre a cabeça - tentava
entender esta dinâmica gastronômica dos pombos que coabitavam a praça. Sempre
igual! Iniciava por volta de meio-dia, com maior movimento de seres humanos se
alimentando por ali. Aparentemente de forma inesperada, o bando voava até algum
alimento, fazia seu ataque, comia e voltava para a segurança das árvores. Então,
ficavam repetindo isso até o início da tarde, quando diminuía a circulação de
pessoas e a praça voltava a ficar relativamente calma.
Intrigado
e cheio de planos misteriosos, o inquieto pelincho analisava o curioso
comportamento dos colegas emplumados. Percebia que se tratava de um movimento
combinado entre eles. Quando um dos pombos percebia a comida, voava na sua
direção fazendo um som específico, um tipo de chamado para os demais do grupo,
que imediatamente identificavam e o seguiam. Chegando lá, se alimentavam
rapidamente e, finda a comilança, voltavam para segurança das árvores,
aguardando um novo desastrado deixar cair parte de seu cachorro-quente no chão.
Sendo
o pelincho um bicho ardiloso, na mesma hora pensou em uma forma de tirar alguma
vantagem daquele divertido vai-e-vem coletivo. E é então que, sorrateiramente,
se aproximou de um dos pombos.
-
Amigo! Ei, amigo! Psiu! Vem cá. Quero de te fazer uma pergunta.
Um dos
pombos, muito desconfiado com a ladainha da ave amarela, se aproximou do
interlocutor e perguntou o que ele queria. Sem perder tempo, o pelincho, ora
sussurrando, ora falando alto, abrindo bem os olhos entre uma frase e outra, questionou
o pombo:
-
Percebi que os nobres amigos columbinos possuem uma combinação para se
alimentar, estou certo? Vejo que quando um de vocês percebe um alimento, trata
de logo avisar a todo o bando. Curiosa essa atitude. Bonita, até! Mas há nela
um sério problema de organização. Só que, meu amigo, tu estás com sorte hoje!
Porque eu vou te ensinar a fazer isto da forma correta. E sem te cobrar nada!
Apenas porque gostei muito de ti.
Com
uma sedutora fala articulada, cheia de argumentos muito convincentes, e algumas
citações das quais o pombo jamais tinha ouvido falar, o pássaro solitário explicou
que seria muito melhor se ele, pombo, ao encontrar comida, não fizesse alarde
algum, voando silenciosamente até ela e se servindo à vontade, pegando toda
comida para si. Desta forma, jamais passaria fome na vida!
- Veja
bem, meu amigo! Estamos aqui falando da tua existência! De liberdade! Tu te
alimentas, teus amigos se alimentam! Cada um cuida apenas de sua comida. Todo
mundo se alimenta e ninguém precisa ficar se preocupando com ninguém. E tu
sabes muito bem que pombo alimentado jamais será escravizado!
O
pombo refletiu um pouco e considerou levar a sério as ideias do pelincho. Afinal
de contas, parecia tudo fazer sentido naquele momento. Os argumentos, as
citações e, principalmente, a lábia do outro pássaro.
O astuto
pelincho fez o mesmo com os demais pombos. Indo de um a um, convenceu a todos
de que aquele negócio de avisar os demais pássaros do bando e compartilhar a
comida era uma péssima ideia. E todos acreditaram. No dia seguinte cada um dos
pombos ficou separado dos demais. Quando um deles percebia comida, voava silenciosamente
até ela e comia sozinho. Sem avisar ninguém. No entanto, o que aconteceu a
seguir não foi exatamente o esperado pelo bando, nem as consequências, que
foram arrasadoras.
A
comida, quando compartilhada, era suficiente para todos. Está certo que ninguém
comia até se empanturrar, mas nenhum dos animais passava fome. Contudo, sem a partilha,
apenas alguns poucos conseguiam se alimentar e se nutriam bem. Os demais
começaram a emagrecer e, sem alimento suficiente, adoeciam e acabavam morrendo.
E assim aquela minoria que se alimentava ia ficando mais pesada, enquanto a
maior parte do grupo ia sucumbindo aos poucos.
Em uma
manhã de domingo, quando os primeiros raios de sol iluminavam a copa das
árvores, os pombos ao acordarem perceberam que não estavam mais sozinhos. Havia
um bando enorme de pelinchos que os observava, pulavam entre os galhos das
árvores, os espiando por entre as folhas. Quando, de repente, um dos pelinchos alçou
voo, fazendo um barulho característico, todos do bando foram sincronizadamente atrás
e atacaram os restos de um cachorro-quente que havia caído no chão. Os parcos
pombos remanescentes, pesados e lentos, não conseguiam acompanhar as ágeis aves
amarelas, e aos poucos começaram a ficar com fome, adoecer e morrer, da mesma
forma que havia acontecido com seus esfomeados irmãos dias atrás.
Em poucos dias não havia mais um pombo sequer na praça. Ela havia se transformado em um domínio única e exclusivamente dos pelinchos que, agora, usavam a mesma tática dos pombos para se alimentar e sobreviver.
Observação: Pelincho também é conhecido como rabo-de-palha, anu-branco, alma-de-gato e periguá. Aparece, no Brasil, do sudeste do Amapá e do estuário amazônico ao pampa gaúcho (Wikiaves). É comum tanto nas zonas urbanas quanto nas áreas rurais.
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