CONTO 017 - O PELINCHO E OS POMBOS

Durante o dia aquela praça era uma algazarra só. Crianças correndo para lá e para cá, algumas pessoas carregando cãezinhos pela coleira, muitas comendo cachorro-quente, sentadas nos bancos à sombra das árvores. Vozes dos pequenos que saíam da escola próxima se misturavam ao som dos carros passando pela avenida e aos gritos dos vendedores ambulantes. Agitação comum a qualquer praça bem arborizada localizada na região central de uma cidade grande.

Subitamente, um bando de pombos voava do alto de uma das árvores, passava por sobre as cabeças das pessoas, como em uma dança sincronizada, e atacava ferozmente os restos de um pão e fragmentos de salsichas que haviam caído no chão. Permaneciam numa espécie de ritual em volta do banquete e depois saiam voando, finalizando sua coreografia, e pousavam novamente nos galhos das árvores mais altas.

Observando os pombos por entre as folhas de uma árvore, um pelincho -espécie de ave de penas amareladas, cauda comprida e um penacho marrento sobre a cabeça - tentava entender esta dinâmica gastronômica dos pombos que coabitavam a praça. Sempre igual! Iniciava por volta de meio-dia, com maior movimento de seres humanos se alimentando por ali. Aparentemente de forma inesperada, o bando voava até algum alimento, fazia seu ataque, comia e voltava para a segurança das árvores. Então, ficavam repetindo isso até o início da tarde, quando diminuía a circulação de pessoas e a praça voltava a ficar relativamente calma.

Intrigado e cheio de planos misteriosos, o inquieto pelincho analisava o curioso comportamento dos colegas emplumados. Percebia que se tratava de um movimento combinado entre eles. Quando um dos pombos percebia a comida, voava na sua direção fazendo um som específico, um tipo de chamado para os demais do grupo, que imediatamente identificavam e o seguiam. Chegando lá, se alimentavam rapidamente e, finda a comilança, voltavam para segurança das árvores, aguardando um novo desastrado deixar cair parte de seu cachorro-quente no chão.

Sendo o pelincho um bicho ardiloso, na mesma hora pensou em uma forma de tirar alguma vantagem daquele divertido vai-e-vem coletivo. E é então que, sorrateiramente, se aproximou de um dos pombos.

- Amigo! Ei, amigo! Psiu! Vem cá. Quero de te fazer uma pergunta.

Um dos pombos, muito desconfiado com a ladainha da ave amarela, se aproximou do interlocutor e perguntou o que ele queria. Sem perder tempo, o pelincho, ora sussurrando, ora falando alto, abrindo bem os olhos entre uma frase e outra, questionou o pombo:

- Percebi que os nobres amigos columbinos possuem uma combinação para se alimentar, estou certo? Vejo que quando um de vocês percebe um alimento, trata de logo avisar a todo o bando. Curiosa essa atitude. Bonita, até! Mas há nela um sério problema de organização. Só que, meu amigo, tu estás com sorte hoje! Porque eu vou te ensinar a fazer isto da forma correta. E sem te cobrar nada! Apenas porque gostei muito de ti.

Com uma sedutora fala articulada, cheia de argumentos muito convincentes, e algumas citações das quais o pombo jamais tinha ouvido falar, o pássaro solitário explicou que seria muito melhor se ele, pombo, ao encontrar comida, não fizesse alarde algum, voando silenciosamente até ela e se servindo à vontade, pegando toda comida para si. Desta forma, jamais passaria fome na vida!

- Veja bem, meu amigo! Estamos aqui falando da tua existência! De liberdade! Tu te alimentas, teus amigos se alimentam! Cada um cuida apenas de sua comida. Todo mundo se alimenta e ninguém precisa ficar se preocupando com ninguém. E tu sabes muito bem que pombo alimentado jamais será escravizado!

O pombo refletiu um pouco e considerou levar a sério as ideias do pelincho. Afinal de contas, parecia tudo fazer sentido naquele momento. Os argumentos, as citações e, principalmente, a lábia do outro pássaro.

O astuto pelincho fez o mesmo com os demais pombos. Indo de um a um, convenceu a todos de que aquele negócio de avisar os demais pássaros do bando e compartilhar a comida era uma péssima ideia. E todos acreditaram. No dia seguinte cada um dos pombos ficou separado dos demais. Quando um deles percebia comida, voava silenciosamente até ela e comia sozinho. Sem avisar ninguém. No entanto, o que aconteceu a seguir não foi exatamente o esperado pelo bando, nem as consequências, que foram arrasadoras.

A comida, quando compartilhada, era suficiente para todos. Está certo que ninguém comia até se empanturrar, mas nenhum dos animais passava fome. Contudo, sem a partilha, apenas alguns poucos conseguiam se alimentar e se nutriam bem. Os demais começaram a emagrecer e, sem alimento suficiente, adoeciam e acabavam morrendo. E assim aquela minoria que se alimentava ia ficando mais pesada, enquanto a maior parte do grupo ia sucumbindo aos poucos.

Em uma manhã de domingo, quando os primeiros raios de sol iluminavam a copa das árvores, os pombos ao acordarem perceberam que não estavam mais sozinhos. Havia um bando enorme de pelinchos que os observava, pulavam entre os galhos das árvores, os espiando por entre as folhas. Quando, de repente, um dos pelinchos alçou voo, fazendo um barulho característico, todos do bando foram sincronizadamente atrás e atacaram os restos de um cachorro-quente que havia caído no chão. Os parcos pombos remanescentes, pesados e lentos, não conseguiam acompanhar as ágeis aves amarelas, e aos poucos começaram a ficar com fome, adoecer e morrer, da mesma forma que havia acontecido com seus esfomeados irmãos dias atrás.

Em poucos dias não havia mais um pombo sequer na praça. Ela havia se transformado em um domínio única e exclusivamente dos pelinchos que, agora, usavam a mesma tática dos pombos para se alimentar e sobreviver.


Observação: Pelincho também é conhecido como rabo-de-palha, anu-branco, alma-de-gato e periguá. Aparece, no Brasil, do sudeste do Amapá e do estuário amazônico ao pampa gaúcho (Wikiaves). É comum tanto nas zonas urbanas quanto nas áreas rurais.



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