A ROMANTIZAÇÃO DO TRABALHO NA ADOLESCÊNCIA - Leandro de Araújo
Comecei a trabalhar "de carteira assinada" com 14 anos. Essa expressão é a que usamos aqui no Rio Grande do Sul para nos referir ao trabalho formal, com contrato, direitos trabalhistas. Era auxiliar de serviços gerais em uma metalúrgica de médio porte em São Leopoldo. Entre furar algumas peças de metal e dobrar alguns dispositivos para serem futuramente soldados, eu era responsável por, diariamente, colocar as marmitas que todos os colegas traziam de casa em uma grande forma de "banho-maria" para aquecer, e por limpar o banheiro dos funcionários da empresa.
Sim, com 14
anos, eu tive que parar de jogar bola no campinho da esquina de casa, parar de
conversar com os amigos da rua embaixo da amoreira depois do jogo, interromper
as tardes onde dividia as tarefas da escola com tudo aquilo que fazia parte da
vida de alguém recém-chegado à adolescência, para limpar os mictórios e "sanitários de peão", um buraco no chão onde os funcionários
ficavam de cócoras para defecar sem ficar muito tempo no banheiro. Mas eu estava
lá, ganhando meu salário mínimo todo mês, podendo comprar um tênis melhor do
que aquele que meus pais podiam me dar. Estudava à noite, porque era
necessário terminar o Ensino Fundamental.
Lembro que
algumas pessoas mais velhas na época elogiavam o jovem que já trabalhava. Eu
era exaltado como uma espécie de exemplo, porque "em vez de estar na rua
aprendendo porcaria, estava trabalhando com a responsabilidade de um
adulto". O problema dessa fala bonita é que eu não era adulto. Não queria ser adulto. Eu
queria ouvir Legião Urbana. Queria beber escondido. Queria beijar na boca, ou pelo
menos fantasiar isso. Queria jogar bola a tarde toda e levar bronca por não ter
feito o tema de casa da escola. Queria arrancar a ponta do dedão chutando o
chão duro do campinho da esquina. Queria cometer todos os erros possíveis
durante a adolescência, porque depois, quando fosse adulto, não poderia mais
fazê-lo.
Fiquei dois anos nesta empresa. Saí de lá para estudar no SENAI e ser aprendiz em uma metalúrgica maior. Acabei saindo do SENAI porque fiz o concurso para a Fundação Liberato, importante e disputada escola técnica que fica na cidade de Novo Hamburgo. Ir para o Liberato me permitiu estudar longe de casa, longe da fiscalização dos pais. Precisava pegar ônibus para ir e voltar. Adivinha o que eu descobri com isso? Que podia matar aula sem ser descoberto. E aí fazer tudo aquilo que o adolescente de 14 anos não pode fazer. Aos 17 anos, repeti de ano no primeiro ano, troquei de curso e tive que sair da escola técnica aos 19 anos, pois fui convocado a servir o Exército Brasileiro. Sem ter finalizado o Ensino Médio. Joguei no lixo dois ou três anos da minha vida. Não sabia direito se era em função da displicência com que tratava o Ensino Médio no Liberato, ou porque estava tentando recuperar o tempo perdido no início da adolescência.
O trabalho do
adolescente, principalmente para atender a expectativa dos adultos de ter em casa um
jovem que “já trabalha”, é o cerceamento do principal momento da vida deste
jovem, o momento de errar e sofrer as consequências disso, de superar as dificuldades e
retomar o caminho certo. Imputar responsabilidades adultas ao adolescente é tirar
a sua chance de aprender com as falhas: os gols perdidos, as brigas na saída da escola, as broncas dos pais,
as notas vermelhas que precisam ser recuperadas sob pressão. É fazer com que
alguém que não aprendeu sequer a lidar com o fora daquele “crush” do colégio a
se preocupar em bater o ponto no horário certo, responder ao chefe, assinar o contracheque e “o que fazer com a ferramenta que eu estava usando e quebrou nas minhas mãos?
Vou levar um castigo, uma bronca ou ser demitido?”
Deixar o
adolescente ser o que é, ADOLESCENTE, é respeitar o seu tempo. Seu melhor tempo! Permitir que ele
aprenda em seu tempo, que possui prioridades e aprendizados muito diferentes do adulto. Tirar isso do jovem é dizer a
ele que a etapa que está iniciando é um problema, e não o rumo natural das
coisas. E todo projeto cujas etapas são negligenciadas, deixa um rastro de
fragilidades que, mais cedo ou mais tarde, cobrará um preço alto. O preço da
consequência. Se tratar um adolescente como um idiota, ele vai agir como tal.
Se tratá-lo como um adulto, ele vai virar um adulto com grandes chances de
fazer idiotices. Trate-o, portanto, como alguém que está desenvolvendo seu
caráter e que precisa passar por esta etapa tão linda da vida com a plenitude que
ela exige.
Para resumir minha
história, que havia iniciado aqui atrás: já adulto e casado concluí o Ensino Médio em um péssimo curso supletivo. Levei uma eternidade para concluir uma graduação.
Me formei com 47 anos, dividindo a atenção dos estudos com dois filhos, responsabilidades, contas para pagar... Perdi muito tempo e desenvolvi
dificuldades de concentração e de continuidade. Demorei a aprender a conversar com
pessoas. Confundia facilmente as frustrações de adulto com as punições de um
adolescente. Até hoje tenho dificuldade para lidar com meus erros, com a
cobrança dos gestores; sinto uma necessidade constante de me provar para não me
sentir uma fraude. Ou seja, tudo aquilo que não pude experimentar aos 14 anos, porque estava limpando o banheiro de uma metalúrgica, estão
aqui pesando às minhas costas. O preço da consequência.
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