Quando
uma expressão é ressignificada pela internet, corre o risco de tomar vários
caminhos, que vão do rápido e impiedoso esquecimento - tudo pode ser muito
rápido nesse universo - até a perpetuação como palavra legítima da língua
portuguesa. Vocês sabiam que as palavras “deletar”, “escanear” e “clicar”, há
pouco tempo, nem faziam parte do nosso idioma? Sabiam que “printar”, e “chipar”
ainda não fazem, oficialmente? “Salvar”, como sinônimo de gravar arquivo
digital, pasmem, só foi reconhecido em nossos dicionários no final da década de
1990!
Dos tantos novos significados que algumas palavras ganharam
com a massificação das redes sociais, nenhuma tem se repetido tanto nos dias de
hoje quanto “cancelamento”. É uma daquelas expressões que
dificilmente se define de onde saiu e a quem se referiu pela primeira vez com o
novo significado que a internet lhe deu. Mas atingiu tamanha força que tem frequentemente
ultrapassado o universo digital e ganhado o mundo off-line.
“Cancelar”, se formos procurar nos dicionários, ainda se refere apenas a tornar algo sem efeito, declarar nulidade de alguma coisa. Sequer esta palavra aparece como uma ação que se possa usar contra outra pessoa. No entanto, para bom entendedor de internetês básico contemporâneo, esta palavra recebeu uma conotação mais agressiva, ao ganhar status de “algo a se fazer contra alguém”.
Dando uma consultada rápida na internet e perguntando a alguns amigos que se dispuseram a me ajudar pelo Twitter e pelo Facebook, descobri que “Cancelar”, no caso de uma ação contra alguém, é uma forma cruel de julgamento. Não apenas o julgamento que aponta as falhas e pelo qual se pressupõe uma punição virtual, mas o julgamento argumentado com raiva, com direito ao ativismo do ódio e recomendação de sentença em todas as esferas, inclusive fora da internet, se for possível. A pessoa que cancela não quer apenas deixar de acompanhar o seu alvo, mas quer que as outras pessoas também deixem. Vai recomendar a seus amigos que façam o mesmo. E qualquer tipo de agressão que o “cancelador” cometa só vai ter sentido mesmo se puder ser compartilhado e viralizar.
Se
formos fazer uma comparação simplista, podemos dizer que “cancelar” é o mesmo
que se declarar guerra a todos que gostam de algo que não se gosta, como salada
de cebola, por exemplo. Em vez de simplesmente pedir outra coisa para comer,
o bom “cancelador” iria falar mal da cebola para o máximo de pessoas possível.
Um ótimo “cancelador”, então, compartilharia informações, mesmo que falsas,
teorizando que a cebola faz muito mal à saúde. E o mestre do cancelamento
reuniria um grupo de amigos que comunga do mesmo asco pelo tempero e se
encarregaria de fazer uma ação organizada para difamá-lo.
O
“cancelamento” da internet não se aproxima dos dicionários, cuja definição fala
sobre anular alguma coisa. Está, na verdade, andando lado a lado de outra
palavra que está há muito tempo em nosso vocabulário. “CANCELAMENTO”, hoje em
dia, é sinônimo de SILENCIAMENTO.
E por
que alguém gostaria de cancelar ou silenciar outra pessoa? Acredito em somente
uma resposta possível para esta pergunta: Entre
o cancelamento e o silenciamento, há a mordaça da arrogância, da prepotência e,
principalmente, do medo.
A sociedade
“livre e organizada”, por arrogância, prepotência e medo, já tratou de fazer
vários cancelamentos em sua história. Entre os cancelados temos pretos, gays,
mulheres, pobres, índios, infiéis. Para todos estes já foram feitos os mais
absurdos julgamentos possíveis, que vão desde “espalham doenças perigosas” até
“possuem menos inteligência”, passando por “influenciar negativamente as
criancinhas” e “ofendem os desígnios de Deus”. São maneiras diferentes de dizer
que “a salada de cebola faz mal”. E muita gente acredita nisso.
No
Brasil já tivemos cancelamentos importantes, muito antes desta palavra se
tornar jargão da internet. Nossa História, em diversos momentos e situações,
está recheada de silenciamentos deste tipo. Na cultura, no esporte e, como era
de se esperar, na política. Talvez o cancelamento mais significativo que
tivemos em nossa história política foi promovido pela ditadura militar.
Em
1964 não havia internet. As formas de se propagar informação eram através da
imprensa, principalmente jornal e rádio, e através da arte. Com o mundo
dividido em esquerda e direita, os militares, apoiados pelo governo civil e direitista
dos Estados Unidos, ao assumirem o poder através de um golpe na democracia,
logo escolheram a sua “salada de cebola” da vez. Então, todas as pessoas
e ideias que se opusessem à sua visão social, política e econômica, foram
chamados de comunistas. Mas é claro
que apenas dar-lhes um nome em comum não seria um cancelamento suficientemente
eficiente. Então a imprensa foi obrigada a propagar a ideia de que todos
os tais comunistas seriam terroristas em potencial, cujo extermínio seria
benéfico ao país. Pessoas nas ruas reproduziam que comunista era ateu, inimigo
da pátria e, inclusive, comia criancinhas! Sério! Isso foi reproduzido
amplamente na década de 1960. Para garantir que este conceito ganhasse
credibilidade entre as pessoas, a imprensa ficou proibida de veicular qualquer
informação que contradissesse isso. Músicas, livros e artes plásticas
precisariam ser aprovadas antes de chegar ao público, porque não poderiam fazer
as pessoas entenderem que, sendo ou não comunistas, os contrários à ditadura
militar apenas esperavam que os sistemas político, social e econômico, fossem
diferentes. As pessoas precisavam continuar acreditando que a esquerda era
constituída por terroristas comedores de criancinhas. Uma evidente notícia
falsa, pois o Brasil foi governado pela esquerda por quatorze anos, sem terroristas
ou criancinhas servidas ao molho pardo.
Percebemos
que apesar da ressignificação da palavra “cancelamento” ser recente, o conceito
de silenciar alguém ou uma ideia é antigo. Os métodos permanecem semelhantes aos
do tempo da ditadura militar, mesmo que os meios de propagação sejam outros. A
arrogância, a prepotência e o medo continuam sendo grandes motivadores, assim
como a propagação de mentiras segue sendo um instrumento muito usado e muito
eficiente.
É importante entender que “cancelar”, com o conceito que estamos utilizando nos dias de hoje, não faz bem para ninguém. Que antes de silenciar uma voz ou uma ideia, deveríamos entender as alternativas. Aceitar que, mesmo aquilo que nos parece absurdamente ruim, é uma possibilidade de reflexão acerca daquilo que nos pode ser bom. Só procura silenciar alguma voz quem tem medo de dialogar com ela e acabar descobrindo que está errado. A propósito, descobrir que está errado ainda é melhor do que permanecer no erro, achando que se está certo.
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