A MINHOCA, O PEIXE E O HOMEM
Leandro de Araújo
Era uma vez uma minhoca.
Ela
estava presa a um anzol.
Um
peixe, ao aproximar-se, viu aquela delícia e comeu. Ela morreu.
Mas o
peixe ficou preso no anzol. O homem o retirou da água e cortou sua cabeça. Ele
morreu.
O homem,
ao comer o peixe, engasgou-se com um espinho. Também morreu.
Em um
lugar que parecia fora da realidade, além do tempo e do espaço, foi feito um
julgamento para decidir quem merecia o paraíso e quem iria para o inferno.
Estavam os três espíritos lado a lado, aguardando o veredito. O homem, com o
olhar tristonho e a cabeça baixa, apenas suspirava profundamente. O peixe
flutuava como se estivesse nadando melancolicamente no ar. A minhoca
contorcia-se no chão sem conseguir sair do lugar, observada de cima pelo peixe
e pelo homem.
O Juiz,
um ancião de cabelos e barbas brancas, de pele clara e olhos azuis, vestindo uma
túnica alvíssima, estava sentado à cabeceira de uma grande mesa. Ao seu lado, o
promotor, um grande peixe de olhos redondos e brilhantes, ornado por escamas
coloridas. Ambos rodeados por uma aura luminosa divinal, que deixava claro aos julgados
o fato de estarem diante de seres realmente importantes e poderosos.
O
silêncio da sala é quebrado quando o Juiz bate seu malhete na mesa.
-
Estamos aqui para ouvir da promotoria suas acusações, para que eu possa, usando
todo meu conhecimento, decidir de forma justa e imparcial o futuro destas almas
desencarnadas.
A voz do
Juiz era grave e seu rosto não esboçava qualquer sentimento. O ambiente parecia
preencher com suas palavras, que eram seguidas de um eco musical. Ele seguiu
sua fala, dirigindo-se agora ao promotor.
-
Prezado promotor, o que tens a dizer com relação a este homem que aqui está
esperando sua sentença?
O
promotor, que até então permanecia calado, movimentando suas nadadeiras
lentamente no ar, inicia sua explanação, falando com a calma das águas de um lago
profundo e gelado.
- Este
homem, meritíssimo, morreu tentando alimentar-se. Foi uma vítima das circunstâncias.
Matou o peixe porque é da sua natureza usar seres inferiores, do ponto de vista
da criação divina, como meio de subsistência. Recomendo sua absolvição, e abrir-lhe
as portas do céu.
O Juiz
ouviu em silêncio as palavras do promotor. Por fim, olhou o homem nos olhos,
bateu o malhete na mesa e proferiu:
- Tu estavas
cumprindo teu papel na Terra. Fizeste o que era esperado de alguém que, para saciar
a fome, usaria aquilo que a própria Terra havia para oferecer. És superior ao
peixe que matou e, por isso, o absolvo. Podes adentrar às portas do céu.
Ao
findar o veredito, ouve-se o som de trombetas e grandes portas se abrem atrás
da cadeira onde está sentado o ancião. Anjos se aproximam do homem e o levam através
das portas celestiais, que voltam a fechar com um com uma pancada barulhenta.
- Sobre
o peixe, o que tens a me dizer, promotor?
- Este
animal cumpriu seu destino, meritíssimo. Morreu para servir ao homem, como todo
ser inferior deve fazer. Matou a minhoca, mas não havia a intensão de comê-la,
apenas estava atendendo o chamado de seus instintos. Recomendo sua absolvição, e
o direito de adentrar às portas do céu.
O ser
divinal passou uma das mãos pela barba branca, mirou os olhos do peixe, bateu o
malhete e sentenciou:
- Não há
nada mais correto que aceitar seu papel no mundo. Peixe, cumpriste aquilo para
o qual estavas destinado. Mataste a minhoca para ser mais nutritivo aquele que servirias
de alimento. És superior à minhoca que matou e, por isso, o absolvo. Podes
adentrar às portas do céu.
Novamente
as trombetas, as portas abrindo e, agora, um cardume de peixes iluminados se
acercaram da alma escamosa, levando-a para o interior das portas celestiais.
-
Finalmente, a minhoca. O que pode ser dito sobre este pequeno e frágil ser,
promotor?
O grande
peixe colorido ficou ainda mais sério. Franziu o cenho, mexeu em alguns papéis,
respirou fundo e, finalmente, começou a falar.
-
Meritíssimo, o que temos aqui é muito pior do que parece ser. Esta minhoca
obviamente sabia que o peixe, ao vê-la, não resistira a seus instintos,
tentando se alimentar. Ao fazer isso, seria capturado pelo homem que, servindo-se,
poderia engasgar-se e morrer. Esta minhoca, que parece inofensiva, seduziu o
peixe, sendo responsável por seu fim e, consequentemente, pela morte do homem. Recomendo
sua condenação ao inferno, onde deve permanecer pela eternidade todo aquele que
induz o homem a cometer tamanho erro.
O Juiz,
muito sério, ergue-se de sua cadeira. Dá uma ajeitada na túnica, coça o queixo
sob a barba, bate com força o malhete e profere:
- Minhoca,
precisas ser punida que para outras minhocas entendam que a justiça existe para
servir aqueles que a merecem. És culpada por oferecer-se. Até a forma com a
qual se moves é uma provocação ao instinto do peixe e um perigo ao homem. Teria
vergonha se tivesse uma filha que fizesse o que fazes. És inferior ao homem e
ao peixe e, por isso, a condeno. Ganharás a porta do inferno, lugar onde devem
permanecer as criaturas inferiores que acreditam que podem se igualar ao peixe
e ao homem.
Por trás
da pequena minhoca, lentamente abre uma porta de dobradiças barulhentas, por onde
saía uma fumaça escura. Por ela saem diminutos diabinhos, ostentando pequenos
chifres e armas. Com violência arrastaram a condenada ao inferno. Antes de passar
pela porta, a minhoca ainda consegue olhar para trás e vê o Juiz e o promotor
sorrindo. Ambos agora exibem pequenos chifres, iguais aos dos diabinhos, que
permaneceram magicamente ocultos durante todo julgamento.
Quando a grande porta fecha, novamente a minhoca está no fundo do rio, presa a um anzol. Por traz de uma pedra, um grande peixe, de olhos famintos, a observa.
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