OPINIÃO 132 - Se todos parecem temer o desemprego, por que um funcionário pede demissão? Quando um bom salário não é suficiente?

 

SE TODOS PARECEM TEMER O DESEMPREGO, POR QUE UM FUNCIONÁRIO PEDE DEMISSÃO? QUANDO UM BOM SALÁRIO NÃO É SUFICIENTE? - Leandro de Araújo


Isso aconteceu comigo há poucos anos. Gostaria de compartilhar com vocês.

Com uma família numerosa, dois filhos pequenos, não podia cogitar ficar desempregado. A falta de um curso superior tornava tudo muito difícil, pois na área da educação, além de me provar para quem me contratava, havia a necessidade de lutar sempre para não me sentir uma fraude. Acreditem, isso era mais doloroso do que mostrar competência para quem contratava. Nesse sentido, muitas vezes trabalhava infeliz, mas com o senso de responsabilidade sempre gritando no meu ouvido “Vai lá e faz o que tem que ser feito da melhor maneira que tu conseguires!”. Eu ia...

Levei minha vida profissional desta forma até que me formei na faculdade de Letras, com mais de 45 anos. Agora estava documentado! Eu não poderia mais me sentir uma fraude, porque havia um documento que dizia o quanto eu havia me preparado para merecer, antes do meu primeiro nome, a palavra PROFESSOR. Eu não precisaria mais “parecer” ou “cumprir a função de”, pois o antigo sonho da qualificação profissional em terceiro grau estava realizado. Conhecendo o mercado da educação há muito tempo, não parei por aí e emendei duas pós-graduações logo na sequência.

Trabalhava com Tecnologias Educacionais em uma grande escola de Porto Alegre. Uma das mais badaladas, pode-se dizer, quando se fala em sonho profissional para educadores. Excelente salário, alto investimento em estrutura e, consequentemente, status. Todos queriam ter aquela instituição em seu currículo. Contudo, o fato de ser “recém-formado” não me qualificava para atuar como professor ali. De tal forma que acertei minha saída amigavelmente com a direção. A partir de então minha preocupação estava em abrir portas em um mercado muito competitivo e nem sempre justo com seus profissionais. Surpreendentemente, um mês após minha saída da instituição anterior, uma outra escola, também de Porto Alegre, me chamou para uma entrevista. Uma grande escola, com mais de 2.800 alunos, bem estruturada e com relativo prestígio entre as instituições de ensino da capital gaúcha. A felicidade veio morar comigo, pois obtive sucesso em meu processo seletivo e fui o escolhido para dar aulas de Literatura para turmas do nono ano do Ensino Fundamental à terceira série do Ensino Médio.

Com uma experiência de mais de vinte anos trabalhando com educação,  rapidamente estava totalmente adaptado à sala de aula. Mesmo no momento pós-pandemia, onde todos os professores reclamavam da “perda de mão” da escola no que diz respeito à disciplina dos alunos, me dava muito bem com os jovens e conduzia meu trabalho de forma propositiva, com uso de metodologias ativas e uso de recursos tecnológicos. No entanto, a escola exigia compromissos além sala de aula que estavam muito longe do que havia me sido apresentando durante a contratação. A confecção de uma documentação que serviria como referência para todos os professores do componente curricular, baseado na BNCC, estava nos impondo longas horas de trabalho e pesquisa fora do trabalho docente. As reuniões à noite e nos finais de semana, que deveriam ser esporádicas, tornaram-se regra. De tal forma que nós comemorávamos quando conseguíamos uma semana em que não era necessária a presença na escola fora dos dias e horários de nossas aulas. Eu estava vendo que muitos colegas estavam insatisfeitos ou adoecendo. Alguns, inclusive, já haviam pedido demissão. O prazer de chegar à escola começou a dar lugar à tristeza, que logo evoluiu a crises de ansiedade. Problemas como a fadiga, a indisciplina dos alunos, a falta de tempo para dar a atenção à família e a cobrança com relação à documentação que estava sendo elaborada, começaram a misturar com o medo de um futuro duvidoso, pois se saísse da escola corria o risco de deixar a família desamparada financeiramente. Tremores nas mãos, falta de sono e irritabilidade faziam parte do cotidiano. Até que...

Eu tinha duas manhãs livres. Uma oportunidade em uma escola de São Leopoldo havia sido oferecida à minha esposa, que agradeceu, pois já estava trabalhando em outra instituição. Acabei sendo chamado para uma entrevista e fui aprovado. Uma escola muito menor, com um número pequeno de turmas e alunos, uma estrutura muito mais humilde e, principalmente, um salário bem menor. Pouco mais que a metade da escola de Porto Alegre. Em São Leopoldo teria que ministrar aulas em quatro componentes curriculares, apenas para Ensino Médio.

Voltei a ter prazer em ir trabalhar. A escola de São Leopoldo mantém o foco da atividade docente no aprendizado do aluno, com poucas e bem programadas atividades fora do horário letivo. E mesmo recebendo bem menos, pareceu uma oportunidade ótima para eu deixar a escola de Porto Alegre sem desamparar financeiramente a família. Pensando nisso, achei que a solução mais justa seria conversar diretamente com minha gestora imediata e solicitar o desligamento. Assim o fiz, de forma franca e objetiva. O processo foi bem ruim, pois a coordenadora não digeriu bem minha solicitação, fazendo ameaças do tipo “Tu sabes que nós conversamos com as outras escolas de Porto Alegre, né?” e “Estamos fechando as portas nesta escola para ti”, como se ela estivesse me demitindo e não eu que estivesse pedindo demissão. Depois de algumas frases agressivas e ameaças, levantou e, sem sequer me olhar nos olhos, abriu a porta da sala e me mandou ir diretamente ao RH dar entrada no processo de desligamento. Sempre achei que forçar a demissão, faltando ao trabalho ou não executando as tarefas corretamente, um exemplo de falta de caráter, mas aquela coordenadora me fez refletir se não deveria ter feito isso. Mas não. Esse definitivamente não seria eu.

Com este pequeno depoimento, quero ressaltar o quão importante é a preocupação com a saúde mental e o constante acompanhamento das condições psicoemocionais do profissional. O alto salário, a infraestrutura sofisticada e o status de “grande empresa” não são suficientes para manter um funcionário trabalhando em alto rendimento. A escola de Porto Alegre, nos últimos meses, já havia perdido pelo menos cinco professores, além daqueles afastados por problemas relacionados a questões emocionais. Como explicar o desligamento voluntário de tantos profissionais daquilo que poderia ser classificado como um “emprego dos sonhos” para quem trabalha nesta área? A gestão da escola optou por agredir um funcionário que pedia desligamento em nome de sua saúde, responsabilizando-o pela falta de capacidade em assumir que havia perdido o olhar humano sobre seus colaboradores. Lembro da gestora na festa de encerramento do ano dançando e comemorando o fato de que aqueles que estavam ali “sobreviveram aquele ano”. Na verdade, ninguém trabalha para sobreviver à empresa, mas para viver a experiência de trabalhar e ser produtivo. E isso só pode ser feito quando há prazer em realizar seu trabalho. Se for para celebrar, que seja por vencer desafios, por conquistar novos horizontes, e não por não ter sido derrotado, por ter escapado do infortúnio.

Para os amigos gestores, lembrem-se que um bom salário atrai bons profissionais, mas que é necessário muito mais que isso para que eles permaneçam. Não perder o olhar humano e empático é fundamental. Isso exige sensibilidade e, principalmente, diálogo. Converse com seus colaboradores além de avaliá-los como empregados, pois antes do técnico há a pessoa. O profissional é contratado, mas ele nunca se desligará da pessoa. E é ela, a pessoa, que precisa ficar feliz com o trabalho que faz. O profissional é pago para isso.


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Comentários

  1. Posso comentar sobre essa situação pois vivi contigo durante esse momento, e, de verdade, não sabia que passavas por isso tudo. Sempre iluminava a sala de aula quando entravas, tratava a todos, mesmo os que te destratavam, com muita compaixão e carinho. Tenho muito apreço por ti e te levarei como uma grande inspiração para o resto da vida!

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    1. Que coisa maravilhosa de se ler!!! Muito obrigado pelo carinho!!! É o que me faz seguir em frente, acreditando que estou fazendo o bem às pessoas. Abração!!!

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  2. Querido amigo e colega, trabalhei com vc e aprendi mto contigo, sei da sua competência, sua disponibilidade e profissionalismo no que faz e, principalmente, amoroso e familiar. Parabéns pela sua fala e sucesso e felicidade no seu novo trabalho

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    1. Muito obrigado pelo carinho!!! Conta comigo!!! Abração!!!

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  3. Na leveza de suas palavras, enxergo a mim nitidamente… obrigada por partilhar tanta sabedoria!

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    1. Que palavras lindas! Obrigado, de coração, por estar junto neste momento. Abraço fraterno!

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