Belo era um
cavaleiro. Medieval.
Como todo
cavaleiro tinha a missão de proteger o reino e suas instituições mais
importantes: a família, a igreja e o rei. Não necessariamente nesta ordem.
Costumava sair à rua com uma espada à cinta, para que fosse reconhecido
publicamente. Se divertia vendo o temor que causava naqueles que não tiveram a
honra de ser reconhecidos pelo nobre título. Sentia orgulho da importância de
seu trabalho, afinal de contas, poucas pessoas no reino podiam ostentar a
imponência de uma espada de cavaleiro e ser respeitado como tal.
Vaidoso, Belo
também se considerava um homem muito bonito. Com sua postura sempre elegante,
jamais deixaria de fazer reverência às frágeis donzelas do reino. Afirmava que,
enquanto estivesse por perto, princesa alguma precisava se preocupar
malfeitores ou dragões. A força de sua arma seria suficiente para que elas
pudessem continuar tranquilamente vivendo suas vidas tradicionais, dedicando
seu tempo àquilo que faziam de melhor, serem donzelas. Andava por entre as
casas do reino sentindo-se muito bem com o medo que sua enorme espada causava
nas pessoas. Não temam, frágeis donzelas!
Num certo
dia, Belo desperta de um sono pesado, fruto da ressaca de uma noite regada a
bebidas e donzelas. Um prêmio justo e merecido por sua condição de cavaleiro.
Ergue-se de sua cama e, diferente do que fazia todas as manhãs, ao invés de
pegar sua espada e partir em busca de novas aventuras, procura um espelho para
ver se em seu belo rosto havia sinais da animada noite que tivera. E então
acontece algo terrível!
Ao se olhar
no espelho, em vez dos dentes brancos e parelhos, pontiagudas presas
amareladas. As madeixas loiras e abundantes deram lugar a pelos desgrenhados e
sujos. A máscula barba bem aparada desapareceu, dando lugar a algo que parecia
escamas. No lugar dos nórdicos olhos azuis, olhos vermelhos de ódio. Um
verdadeiro monstro!
Belo tomou
um grande susto quando viu seu reflexo. Em seguida riu, imaginando tratar-se de
alguma brincadeira de seus amigos cavaleiros. Tentou arrancar a possível
máscara e, quanto mais tentava esconder sua feiura, mais ela se revelava.
Agora, por baixo das escamas de sua pele, começavam a surgir chifres e seu
nariz, antes voluptuoso, crescia e deformava assustadoramente. Aterrorizado,
tomado de uma ira irracional, pegou sua espada e, sem qualquer dúvida, espatifou
o espelho. O mesmo devia estar encantado, fruto da vingança de alguma dessas
tantas velhas bruxas, as quais muitas ele passou a vida inteira caçando e
queimando em fogueiras.
Desesperado
e com medo de ser visto naquele estado pelas pessoas do reino, vestiu um elmo
que escondia totalmente sua feiura, pegou sua temida espada, e saiu pelas ruas
do vilarejo a procura de um espelho que estivesse livre do encantamento, para
poder-se mirar lindo e sedutor, como sempre fora. Mas não encontra. Cada
espelho encontrado pelo caminho reflete ainda mais características monstruosas.
Olheiras fundas e negras, gosmas nojentas escorrendo de suas narinas, uma cauda
pontiaguda sem pelos. A raiva só aumentava e mais espelhos iam sendo quebrados.
Sua espada nunca havia trabalhado tanto!
Seguia sua
cruzada destroçando todo e qualquer objeto que pudesse refletir sua imagem. Já
não apenas se limitava a pôr fim em seu próprio reflexo medonho, como prometia
aos berros queimar todas as bruxas que ainda estavam vivas.
Cumpriu sua
promessa sangrenta. Primeiramente, caçou as bruxas que declaravam publicamente
sua condição encantada. Em seguida, aquelas que negavam, mas que aparentavam
muito pertencer a alguma ordem mágica. Por fim, tratou de queimar aquelas que
sequer pareciam bruxas, mas que pelo fato de protestarem pedindo o fim ao
bruxicídio, mereciam o fogo também.
Como não
havia mais espelhos ou bruxas no reino, Belo, o cavaleiro, sentiu calmamente
sua ira se abrandar. Ora! Obviamente sua imagem voltaria à beleza que sempre
tivera. Então, depois de acabar com a última bruxa e o último espelho do reino,
seguiu a trilha que levava de volta à aldeia.
No meio do
caminho sentiu sede e resolveu beber água em um riacho. Chegando à margem de um
pequeno rio, tirou seu elmo, soltou a espada da cinta e se abaixou para
alcançar a água em um remanso. Foi então que estendeu as mãos em concha e olhou
para água.
O terror
tomou conta de seu coração! Na água do riacho, entrecortada por pequenos peixes
que nadavam de um lado para outro, um reflexo assustador mostrava que o monstro
continuava lá. E nada que o cavaleiro fizesse mudava isso. Por mais que batesse
com sua espada na água, assim que ela acalmava, voltava a revelar a criatura monstruosa.
Já cansado de tanto golpear seu reflexo sem sucesso, começou a perder as forças
e caiu, extenuado.
Respirava
de forma ofegante, completamente confuso. Em sua cabeça agora uma avalanche de
dúvidas e uma única certeza. Por quê? Desde quando? Uma tristeza enorme toma
conta de seu ser. Está ferido em sua alma, com medo e sem saber o que fazer.
Recupera o
fôlego, volta a sentar-se na beira do riacho e novamente olha seu reflexo. Uma
sombra paira sobre sua consciência quando percebe que talvez o monstro sempre
estivera ali. Que o olhar de medo das pessoas jamais teria sido por causa de
sua grande e temida espada, mas pela sua aparência medonha. Belo entendeu,
então, que de nada adiantava quebrar espelhos ou caçar bruxas, enquanto ele
mesmo não reconhecesse o que representava para todos que estavam próximos.
Muitas vezes os monstros que vemos são apenas reflexos daquilo que está em nós,
mas que a vaidade, ou o medo de não sermos perfeitos, acaba por esconder. Os
espelhos que quebramos jamais voltam a refletir, assim como as bruxas que
queimamos jamais voltarão a fazer sua mágica.
Jogou sua
espada na água e a viu afundar rapidamente, até desaparecer no fundo. O mesmo
fez com seu elmo. Voltou a pegar a estrada em direção à aldeia. Agora entendendo
que se aprendesse a reconhecer seu próprio aspecto monstruoso, talvez pudesse aprender
a entender a importância das bruxas e a real utilidade dos espelhos.
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Excelente reflexão. Cansamos de ver monstros por aí escondidos atrás de máscaras. Mas um dia as máscaras caem, e o que estava escondido se revela...
ResponderExcluirMuito obrigado, Alexandra!!! Abração!!!
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