CONTO 016 - O Patinho

Esta não a história do Patinho Feio como você a conhece. Definitivamente, não é!

Feio nasceu diferente de seus irmãos. Não tinha a mesma plumagem fofinha e amarelinha. No máximo uma penugem de cor indefinida. Também não parecia tão esperto. Tropeçava com frequência, se engasgava com comida, não nadava bem. Foi o último a descascar de seu ovo e por isso mesmo quase foi esquecido no ninho pela Mamãe Pata. Parecia um tanto estranho se comparado com os demais patinhos da ninhada. Quando o Papai Pato o viu pela primeira vez, sua reação foi dizer “Que porcaria é essa?”. A segunda foi olhar bem para a Mamãe, cobrando alguma explicação. Que ela não soube dar, é claro.

Os patos viviam em um sítio. Um belo sítio na verdade. A linda casinha de madeira pintada de azul, janelas brancas com floreiras, uma chaminé com um galo de metal na ponta. Em frente à casa um laguinho cheio de peixes prateados, com uma pequena ilha no centro. Sobre a ilha uma cabaninha que servia de morada para o casal de patos e, agora, sua ninhada. Ao redor do lago havia uma vaca, dois cavalos, algumas ovelhas e muitas galinhas. Um pouco afastado, um chiqueiro com um grande e gordo porco. Tudo muito lindo sob o sol da primavera.

Os animais conviviam harmonicamente. Eram alimentados e bem tratados pelo casal de proprietários do sítio, simpáticos Vovô e Vovó, que cantarolavam alegremente enquanto administravam sua propriedade. 

Tudo muito tranquilo. Até a chegada de Feio.

Logo que saiu do ninho pela primeira vez, o patinho diferente deu de cara com uma tremenda discussão entre Papai Pato e Mamãe Pata. Tentavam empurrar um para o outro a responsabilidade sobre o acontecido. “Como um casal de patos de raça, tão lindo, poderia ter originado um filhote tão esquisito? O que dizer para os demais animais do sítio? Como encarar aquelas galinhas fofoqueiras, que a esta hora certamente já sabiam do que aconteceu e estariam espalhando para todo mundo”?

O pequeno Feio ouvia a discussão e tentava se defender. No entanto, mesmo estando ao lado dos pais, era completamente ignorado. Se aproximou de seus irmãos que brincavam alegremente, nadando entre os peixinhos prateados. Quando perceberam a presença de Feio, começaram a rir e debochar. “Olha ali, que bicho mais estranho!” diziam patinhos e peixes apontando asinhas e nadadeiras na direção da diminuta e singular ave. 

Com certa dificuldade, já que não era bom nadador, Feio deixa seus pais discutindo sozinhos, seus irmãos e peixinhos debochados, e sai do lago melancolicamente. 

Enquanto andava desengonçado pelo sítio, ia ouvindo os comentários e chacotas dos demais animais, por onde quer que passasse. Os cavalos pararam de pastar e soltaram relinchos zombeteiros. As ovelhas viraram de costas, exibindo seus rabinhos e dando risadinhas que mal conseguiam disfarçar. As galinhas, que sequer se deram o trabalho de dissimular, gargalhavam e cocorejavam francamente, soltando frases debochadas e piadinhas. Ao passar pela vaca, esta lhe deu uma rabanada com tanta força, que o jogou longe. Finalmente, mas não menos doloroso, ao cruzar pelo chiqueiro o grande porco roncava, fazia caretas ameaçadoramente feias e dizia “Sai fora, feioso!”.

Com tudo isso, Feio, o Patinho, não viu outra opção senão abandonar o sítio e tentar encontrar um lugar onde não parecesse tão estranho aos olhos daqueles que estivessem ao seu redor. 

Após andar por algum tempo, cruzando por trilhas completamente desconhecidas, a pequena ave estaca em frente à uma encruzilhada. Diante de si dois caminhos, sinalizados por uma placa de madeira onde apontavam duas setas. A que apontava à direita, mostrava um caminho lindo, calçado com pedras cúbicas e ladeado por flores e borboletas; a placa anunciava que esta direção levava ao “Lago dos Belos Cisnes”. A seta para a esquerda indicava uma estrada de terra batida muito irregular, com pedras e espinhos no caminho; acima da seta apenas uma palavra pintada à mão e já com a tinta descascando: “CATARSE”.

A escolha parecia óbvia. Porém, quando Feio, o Patinho, deu o primeiro passo em direção à linda estrada à direita, pensou “Se nem em minha casa, com minha família e seus amigos, eu fui bem aceito por ser diferente, o que eu faria em um lugar onde vivem belos cisnes?”. Então, respirou fundo, mudou o caminho e resolveu encarar a misteriosa e acidentada via que levava à tal “catarse”. 

Iniciou a jornada tentando desviar de pedras e espinhos, tropeçando aqui e ali, caindo e levantando. Quanto mais caía e voltava a andar, mais forte suas pernas ficavam. Os espinhos que riscavam sua frágil pele deixavam cicatrizes que aos poucos iam se tornando barreiras que o tornavam mais resistente a novos espinhos. O chão irregular foi deixando seus pés calejados de tal forma, que já não sentia dor, apenas vontade de seguir em frente. 

A única coisa que o entristecia neste momento era a solidão. Não ter alguém, um irmão ou um amigo, para compartilhar aquele caminho de grandes transformações, fazia o tempo passar devagar demais. Quando começou a sentir que o cansaço e o peso de estar só podiam fazê-lo desistir da caminhada, Feio parou por alguns segundos e percebeu que algo por entre as pedras o observava. Talvez não estivesse tão sozinho assim. 

Ouviu sussurros, como se alguém quisesse dizer alguma coisa. Andou até a beira da estrada e viu que junto das pedras e espinhos havia livros. Muitos livros. Alguns pequenos e ilustrados, outros grandes e volumosos. Alguns sozinhos, outros em coleções inteiras, como bandos. Estavam ali o tempo todo, acompanhando-o. Uns sorriam às gargalhadas, outros pareciam sérios e graves. Todos o contemplavam de páginas e braços abertos. Aceitou com alegria sua companhia pelo resto da caminhada. 

Os livros diziam coisas incríveis! Mostravam pessoas e lugares diferentes. Contaram-lhe sobre a bondade e a maldade, a verdade e a mentira, a lágrima boa e o sorriso maldoso. Os livros não o julgavam como diferente ou feio, apenas estavam ali para se fazerem companhia e falarem. Falarem muito.

O tempo passou. Depois de tanto andar já não sentia mais os obstáculos pelo caminho, pois já se tornara amigo deles. Assim como livros, as pedras e os espinhos também lhe ensinaram muito. Então, como já não se preocupava com o que outros podiam dizer sobre sua aparência, Feio, o Patinho, decidiu voltar para casa. Já havia se passado dois anos de sua partida e estava na hora de refazer o caminho de volta.

Quando chegou ao sítio percebeu que tudo estava do mesmo jeito. A casinha de madeira azul, as flores nas janelas brancas, o lago e sua pequena ilha. Estavam lá o porco, as galinhas, a vaca, as ovelhas e os cavalos. No lago, nadava um lindo casal de patos com seus patinhos, rodeados de peixes prateados. Sentados sob o alpendre, um sorridente casal de idosos observando o pôr-do-sol primaveril. Contudo, sentia que algo estava diferente. Não sabia o que era e precisava chegar mais perto para saber. 

Passou pelo porco, que não fez caretas. Pela vaca, que nem se mexeu. Pelas galinhas que ciscavam e cacarejavam animadas, mas que sequer olharam para ele. As ovelhas, assim como os cavalos, pastavam calmamente e nem se deram ao trabalho de notar sua presença. Será que os animais do sítio haviam esquecido dele? 

Quando chegou à ilha no centro do lago, a grande revelação.

Não eram seus pais! Eram outros patos! Lindos, emplumados e cheios de pose. Mas definitivamente não eram os mesmos patos. Observando melhor, também percebeu que os peixes, apesar de muito parecidos, não eram os mesmos. Nem os cavalos, ovelhas, galinhas e o porco. Apenas os mesmos donos do sítio, sorridentes admirando o pôr-do-sol. 

Mirou-se refletido no lago e viu que nada nele estava mudado. Estava maior, sim, mas continuava tão feio quanto era quando deixou o sítio. Por fora continuava igual. Apenas por fora. 

Sua opção em não aceitar o insulto, o deboche e a vaidade, bem como o caminho que escolhera, com espinhos, pedras e conhecimento, o modificaram por dentro. Permitiram ver além do belo e, aparentemente, harmônico. Foi então que um dos amigos de jornada, o livro, ajudou a compreender. 

O porco gordo havia sido vendido a um frigorífico. A vaca, quando já não fornecia mais a mesma quantidade de leite, também. As galinhas, que diariamente forneciam seus ovos, quando ficavam velhas demais para continuar produzindo, viravam um belo cozido. As ovelhas, depois de alguns anos fornecendo lã e cordeiros que eram vendidos pelos donos do sítio, eram substituídas por outras mais jovens, que produzissem mais e melhor. Os cavalos, depois de muito tempo puxando carroças ou servindo de montaria, quando não tinham mais força para o trabalho, eram vendidos para fábricas de salame, salsichas e artesanatos em couro. Os peixes, pescados nos finais de semana, divertiam e alimentavam os netinhos dos donos do sítio, assim como os patos, servidos com molho de laranja nos almoços de família. 

Feio, o Patinho, compreendeu que procurar um caminho diferente do óbvio, do esperado, não apenas salvou sua vida, como o fez livre para questionar o mundo ao seu redor. A lição aprendida na superação dos obstáculos e na companhia dos livros, possibilitou que visse além da aparente beleza. O sorriso no rosto dos donos do sítio era apenas a satisfação em saber que tudo estava bem para eles: os animais alimentados para serem produtivos, até serem eliminados e substituídos quando isso fosse melhor para que tudo se mantivesse lindo e harmônico.

O decidido pato cercou-se de seus livros e seguiu andando. Preferiu a dureza das pedras, os pontiagudos espinhos e as misteriosas e irregulares estradas do conhecimento, que acomodar-se contemplando uma beleza conveniente, enganosa e mortal. Entre colocar um sorriso no rosto dos donos do sítio e meter o pé na estrada, preferiu continuar sendo um patinho feio, mas vivo.




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