![]() |
Ilustração de Molina Campos |
Em uma estância da fronteira havia um cavalo famoso por ser um grande campeão de carreiras em cancha reta. Mouro era orgulho
e mimo do patrão, que já havia faturado muitos prêmios e apostas. Entre os cavalos também era muito respeitado: o mais rápido e o que
podia saltar mais longe, o maior e o mais bonito.
Certo dia, Mouro resolveu parar de correr. Não por achar que estava
ficando velho ou lento, simplesmente porque havia se cansado daquilo. Enfim
entendera que a vida era preciosa demais para ficar apenas dando alegrias e
riqueza para seu dono. Seu destino não poderia estar resumido apenas a correr e
sua vida devia ter uma valia maior. O dono, não entendendo o que acontecera com
seu melhor cavalo, soltou-o no campo, pensando que este adoecera de tanto se
esforçar em nas corridas. E assim, na paz do campo, o cavalo conheceu a
verdadeira liberdade.
O fazendeiro, não estando contente, resolveu treinar um novo
potro: escolheu um jovem petiço chamado Zaino, forte e disposto como aquele que havia
lhe dado tanto orgulho. E lucro. O
potro parecia tão bom quanto seu antecessor, talvez melhor. Ganhava uma
carreira atrás da outra. Contudo, o fato de ser parecido com o velho Mouro, em
vez de orgulho, já estava chateando o jovem Zaino. Não paravam de compará-los.
Estava cansado de ouvir os outros dizerem “Parece ser tão bom quanto o velho
Mouro aposentado!”. Zaino estava indignado. “Que história é esta de tão bom
quanto? Eu sou melhor!” E não restou alternativa senão chamar Mouro
para uma prosa.
-Mouro velho, quero provar para este povo que eu sou o melhor
cavalo daqui. Desafio-te para uma carreira até o Cerro do Coqueiro-Torto. Quem
chegar lá primeiro vence.
O veterano corredor, pastando calmamente à sombra de um
tarumã, sacode a cabeça, tira a crina da frente dos olhos e com muita calma
diz:
-Escuta, meu rapaz, meu tempo de correr já terminou. Foi fase
na minha vida, onde consegui fama e enchi a guaiaca do meu dono. Cansei disto
tudo.
-Como, cansado de fama, de prêmios? Por acaso não gostavas de
ter o pelo escovado, de ter cocheira especial, pasto de melhor qualidade? De
namorar as éguas mais bonitas destes campos? Isto me cheira a desculpa, o que
tu tens eu sei, é medo!
Mesmo com a raiva aparente do jovem cavalo, o velho Mouro manteve-se calmo. Ele entendia que aquilo tudo não passava de orgulho. Então
deu meia volta e foi descendo em direção à sanga mansamente, dizendo:
-Medo? Não... simplesmente não quero mais correr. Se tu
quiseres que eu diga a todos que é melhor, não tem problema, pra mim isso não
tem mais importância.
O cavalo mais novo não se dá por vencido, sabe qual a única
maneira de provar que realmente é melhor. Então resolve provocá-lo de todas as
maneiras para forçá-lo a correr. Faz intrigas e fofocas, diz a todos que Mouro não tem mais o mesmo vigor, que se recusou a correr por medo de não
conseguir nem chegar até o final. Mesmo com toda paciência que a vida
lhe ensinara a ter, Mouro começou a se chatear com aquilo. De tanto ouvir a falação
dos outros animais da fazenda, resolveu aceitar o desafio. Afinal, seria só
mais uma corrida, a última, da despedida. O resultado nem seria o mais
importante, apenas a oportunidade de fazer o jovem cavalo ter paz em seu
coração.
Foi o anúncio mais esperado do ano. Toda a bicharada estava
lá. Um capincho velho seria o juiz de linha e um carancho, famoso por ser
ligeiro, seria o juiz que acompanharia todo o percurso. Sairiam da taipa do
pequeno açude atrás do potreiro e quem chegasse primeiro ao Coqueiro-Torto
seria o campeão.
Zaino parecia possuído, provocando todo o tempo o
experiente cavalo:
-Te prepara para comer poeira, velho...
Mouro, que parecia impassível esperando o sinal de
largada, começou a sentir algo que a tempos não sentia. Poderia vencer o Zaino,
pois se a juventude não estava mais ao seu lado, a experiência faria a
diferença. Conhecia os atalhos do percurso, onde os arroios davam vau, onde o
chão era mais firme. Havia pensado muito na carreira, em deixar o jovem vencer tranquilamente,
mas o coração disparou e o sangue começou a ferver. O velho ímpeto guerreiro
reacendeu a chama de seus olhos. Ao mirá-los agora, pela primeira vez em sua
vida, o jovem sentiu medo.
Ao sinal, os dois saíram.
Era incrível, mas os dois pareciam correr na mesma
velocidade, cabeça com cabeça, cada vez
mais rápidos. Logo que passaram a
primeira sanga o Mouro assume a dianteira, deixando o outro mais de um corpo
para trás. Já passavam de uma légua quando, de repente, Mouro começa a
diminuir o passo. Zaino estranha a atitude do velho cavalo, mas mantém o ritmo das patas cada vez mais fortes. Quando abre uma boa distância começa a dar a carreira por
vencida. Neste momento, o velho cavalo começa a relinchar:
![]() |
Ilustração de Molina Campos |
-Para, Zaino! Para!!!
O potro olha para trás e, sem parar de correr grita:
-Tu pensas que me enganas, velho cretino? Falei que tu
não aguentavas até o final!
Quando volta a cabeça para frente, avista um grande perau,
aberto pela chuva. Um precipício enorme, onde mal se avistava o fundo. Sem
conseguir parar, atira-se ao chão, mas não adianta, cai no perau e fica preso
pelas patas, pendurado na borda do barranco, seguro apenas pela raiz de uma
corticeira, que começava a ceder.
Mouro, vendo a situação do outro cavalo, não pensou duas
vezes, deu a volta e entrou no perau pela frente, onde era possível chegar por
baixo até onde o jovem estava.
Passaram-se alguns segundos e a raiz que prendia as patas do
potro cedeu. Um
som abafado é ouvido, seguido de um ronco horrível saído da boca do cavalo mais
velho que se colocou abaixo do jovem, amortecendo sua queda.
Zaino, desesperado, começa a trotar em volta do velho
mestre e a berrar:
-Por que tu ficaste aí em baixo? Eu merecia ter caído. Foi eu quem te provocou desde o início. Foi meu orgulho, minha inveja!
Mouro, em seus últimos suspiros ainda teve tempo de dizer:
-Quando eu corria, sabia que tinha que buscar
uma razão maior do que simplesmente ser o melhor e o mais rápido. Hoje tu me
ajudaste a descobrir a razão da minha existência. Eu sempre soube que tinha
este perau, mas queria saber se teu orgulho era grande o suficiente para fechar
teus olhos. A lição que tu aprendeste hoje, tu vais levar para toda vida, e
repassar para os que vierem depois de ti.
-Mas não é justo!!!- diz o jovem cavalo.
-Agora sei qual a razão do meu viver: ensinei-te o que é
humildade. Tenho certeza que tu vais lembrar disto para sempre.
Uma baba vermelha começa a escorrer-lhe pelo canto da boca.
Então, Mouro fecha os olhos. Vai a galope para o céu dos cavalos.
Zaino aprendeu sua lição e, apesar de continuar
correndo, nunca mais deixou de respeitar a história daqueles que pararam de
correr. Em vez de tentar provar que é melhor, procura-os na sombra dos capões
de mato, onde sempre pergunta coisas sobre a vida e sempre aprende um pouco
mais sobre ela.
Me segue no Instagram: @leandrodearaujofotografia
E no Twitter: @Le_Aquecimento
Visita o Blog Uma Outra Cor
E minha galeria no Flickr
Ilustrações de Alfredo Molina Campos
Por isso que é sempre bom escutar os conselhos dos mais (velhos) experientes, não competir com eles.
ResponderExcluirAchei muito legal está história.
Abraços Mari.
Muito obrigado, Mari!!! Um beijão!!!
Excluir